Capítulo Um.

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A neve caia em câmera lenta. O vento batia como um sopro sereno nos cabelos engrenhados e escuros de Hadassa, que abraçava a si mesma, tentando se proteger do frio, que parecia cada vez mais castigar sua pequena e singela vila.

Sua pele negra e seu casaco e mala pretos eram as únicas coisas que manchavam a neve clara e congelante; que estava tão compacta que encobria as suas botas, quase chegando a seu tornozelo. A névoa concentrada embaçava o olhar fixo e crítico da menina, que perdia de vista seus pensamentos no horizonte sem vida.

Ao fundo, o trilho de trem que dava vida a cidade estava debaixo de neve, e alguns homens do tamanho de formigas trabalhavam para torná-lo mais uma vez viável. Sem aquele meio de transporte, Lago Congelado seria apenas isso: um lago perdido no meio do gelo.

Estava sozinha. Tudo estava silencioso. O dia estava tipicamente frio, mas, dentro de si, seu peito fervilhava. Enquanto encarava o vazio a sua frente, sentia-se estranhamente cheia de esperança, o que de certa forma, a fazia se sentir mal. Ou quase isso. Na verdade, não sabia o que sentir.

Teria que partir, não havia outra forma, contudo, aquilo que devia machuca-la, na verdade, a dava esperanças. O peito de Hadassa fervilhava ao pensar que finalmente conseguiria enxergar o mundo sem um quilo de perucas amareladas, máscaras, casacos, olhares transpassados e desculpas mal contadas. Ela não podia acreditar que finalmente sairia dali. Nem sua família, que tentaria a todo custo trancafiá-la mais uma vez em sua vida miserável. Mal sabiam eles que ela já planejava esse dia muito antes do maluco com o sobrenome Duval e o título de presidente liderar uma caça às erratas e colocar em jogo a sua vida. Mal sabiam eles que já estava tudo pronto para embarcar logo pela manhã, que ameaçava aparecer no horizonte, com um sol tímido e fraco, há muitos meses.

Estava no topo de algum lugar alto, e dali conseguia ter uma visão privilegiada do horizonte desértico e estranhamente bonito. Abaixo de si, os pinheiros encobertos pela toalha branca formavam um caminho quase convidativo para um passeio sem volta. As nuvens acinzentadas enrolavam-se uma em cima das outra de maneira quase harmônica, parecendo apostar corrida ao passarem por cima da cabeça da menina, que já não sabia mais há quanto tempo estava ali. Hadassa não sabia nem mais quanto tempo vivia ali. Só sabia que era muito tempo. Desde que nascera, na verdade, e quase nunca havia tido um momento livre para sentir o cheiro da neve, para escutar o barulho do vento, para se sentir em casa.

Vira muito aquela paisagem, talvez tenha sido por isso que seu coração tenha congelado nas beiradas.

– Então você está realmente indo embora? – A voz calma, mas ao mesmo tempo trêmula de sua irmã mais nova anunciou sua chegada antes mesmo que seus passos pudessem ser ouvidos.

Sua chegada não a surpreendera. Já esperava por aquilo, e já tinha seu discurso pronto desde que subornara o alistador e incluíra secretamente seu nome na lista de viajantes aprovados, algum tempo atrás.

– Que outra escolha eu tenho? – Respondeu, depois de um tempo de completo silêncio, abaixando o seu capuz e apoiando na neve molhada, sua mala, expondo seus cabelos cheios e escuros para a outra atrás de si. – Vão me caçar.

Foi firme, virando-se para encarar sua irmã a fundo, tentando pela última vez fazê-la entender. Seus olhos escuros estavam fixos nos azuis, quase transparentes, de Giordanna; que tinha os cabelos claros e lisos contrastando com seu nariz avermelhado e pontudo. Ela tinha as bochechas redondas, a pele da cor da neve e quase nenhuma semelhança com Hadassa, sua irmã de sangue.

– Você não é uma errata, você só é... diferente. Isso não existe. É só uma lenda idiota que esses imbecis acreditam pra tornar suas vidas menos entediantes.

Os Quatro Frios Ventos de Inverno |#1| (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora