Capítulo Dois.

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Em Lago Congelado o amanhecer era um espetáculo à parte. O céu, sempre tampado por nuvens pesadas e encardidas, aos poucos arroxeava-se, de modo que as bolinhas de algodão pareciam banhar-se em vinho tinto, vangloriando-se, mudando de cor... antes que aos poucos absorvessem as poças e tornassem o céu mais uma vez acinzentado, ou as vezes até mesmo escuro. Então o dia se iniciava, quase sempre sem nenhum sinal do sol, que ficava escondido atrás das nuvens por tanto tempo que as crianças duvidavam de sua existência. E então mais um dia começava, e provavelmente mais garoa e neblina vinham de brinde. Ou talvez até mesmo, uma tempestade de neve.

Naquele dia em especial, quando Hadassa chegou a seu destino final, o céu estava exatamente assim: tomado pelas nuvens de tempestade, e o seu destino, lotado como nunca antes. A estação de trem estava movimentada como ela nunca imaginou que poderia estar. Tudo bem que ela só havia estado ali uma vez, contudo, nunca imaginou que existissem tantas pessoas em Lago Congelado. O gelo geralmente isolava as pessoas em suas casas. Mas parecia que não naquele dia. Had poderia jurar que todas as famílias de sua vila estavam ali. Menos a sua, é claro.

A estação de trem em si era menor do que ela se lembrava de sua única jornada até lá quando criança, quando seu avô ainda era vivo e ela ainda podia sair de casa sem tampar seu rosto por completo. E, estando ali mais uma vez, depois de tantos anos, não conseguia se livrar das lembranças.

Fixando o olhar na única plataforma de embarque não tinha como se esquecer por completo da última vez que vira seu avô entrar naquele trem cor de terra e desaparecer para sempre. Ela o dera tchau na ponta dos pés naquele dia, e ele tirara o grande charuto da boca para acenar em resposta. Seu avô tinha um sorriso triste no rosto cortado ao meio por uma cicatriz. Ele não sorria muito, e essa era a última memória que tinha dele: um sorriso sem emoção. Um sorriso no rosto de um homem duro, de barba e bigode bem feitos, dedicado até o último fio de cabelo a Vigia. Hadassa nunca vira tanto amor a um trabalho como o que o avô sentia pela Vigia. Os viajantes eram sua segunda família e o trem, sua casa. O veículo cor de terra que ele tanto amava. O último trem que apreciara seu suspiro de vida. O mesmo que Hadassa entraria agora, 20 anos depois.

O trem da Vigia era rodeado por mitos e certezas. Era fato que ele sempre fora o único meio de transporte capaz de atravessar as barreiras entre os continentes e transportar pessoas de um para o outro. Era suposição, entretanto, que ele só o podia fazer pois era encantado. Hadassa não desacreditava em magia, afinal, não se podia negar que havia algo de especial naquele veículo, uma vez que nenhum outro seria capaz de atravessar os mares tempestuosos de Esaon e chegar inteiro para contar a história. O trem ainda podia ser considerado uma barreira nada discreta que garantia a pureza entre os continentes, já que apenas viajantes podiam utilizá-lo e percorrer as distâncias intercontinentais. Qualquer civil comum nunca em vida sairia de seu continente de origem. Apenas o podiam fazer aqueles que juravam nunca interferir na pureza local. Hadassa agora era um deles, mesmo não tendo jurado nada.

O dia já amanhecera escuro, o que, agregado às nuvens pesadas de tempestade, ficava ainda pior. Parecia um fim da tarde em qualquer continente que não fosse aquele. Era mais um dia cinza e branco em Inverno, com a névoa encobrindo os trilhos, fazendo parecer que todos estavam flutuavam em nuvens. Nada muito diferente do usual.

Com mais uma tempestade despontando no horizonte, as pessoas estavam encasacadas até os olhos. Todos eram tão claros que se camuflavam no chão quase branco perto da linha de embarque. Pareciam fantasminhas dentro de seus casacos enormes e, raramente, coloridos.

Famílias se reuniam nos cantos, empurrando carinhos e malas maiores que eles mesmos, conversando, ansiosos, barulhentos. Muito barulhentos. Só havia barulho maior na festa de 21 de junho, a única, e portanto favorita, festa que era comemorada pelos moradores de Lago Congelado. Festa essa que a menina sempre dava um jeito de comparecer, mesmo que escondida, e que chamava a atenção de diversos estrangeiros.

Os Quatro Frios Ventos de Inverno |#1| (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora