E quando cheguei lá, olhei para o chão. E vi que as ruas eram calçadas de ouro. E me foi concedido o poder de lembrar-me de todo o sangue que foi derramado naquela outro tempo, quando os homens davam mais valor à esse ouro do que ao sangue dos inocentes. Lembrei-me de todos aqueles que se venderam e que foram vendidos; dos opressores e de todos os oprimidos. Tudo por causa desse ouro, que agora me serve de paralelepípedo. Me lembrei de todos os momentos perdidos, das tardes ensolaradas, do por e do nascer do mesmo sol... Tudo por causa da minha busca desenfreada por esse ouro.
Olhando para o chão reluzente e vendo o reflexo da minha face, pude lembrar então dos eventos que sempre achei demasiadamente bobos: o campeonato de futebol e as pecinhas de teatro em que meus filhos participavam na escola, mas nunca tive tempo pra ir. Me culpei pelas tardes no parque com a minha família, onde eu raramente estava; e pela tão prometida viagem ao litoral, que nunca aconteceu porque eu dizia nunca ter tempo, ou dinheiro, ou ambos. Me culpei severamente por cada noite de amor negada a minha devotada esposa, hora por cansaço, hora por "não ter cabeça" para tal, e hora por não tomar a atitude de procura-la; e também me culpei pelas noites de amor mal feito, onde a minha cabeça estava mais nos problemas que poderiam ser perfeitamente resolvidos em horário comercial do que na satisfação da mulher que eu julgava amar só porque lhe dava jóias novas frequentemente.
"Será que ela foi realmente feliz com o luxo que lhe dei?" - me perguntei - "Acho que sim. Ela sempre parecia tao feliz naqueles passeios no shopping...". Foi aí que a verdade me caiu como um peso: a felicidade da minha querida não estava nas jóias caras, e nem no restaurante de luxo, e sim nas raras oportunidades de estar ao meu lado, com as suas mãos atreladas as minhas que aqueles pesseios no shopping representavam. "Era por isso então que independentemente do preço da joia, ela sempre parecia tão triste no dia seguinte...".
Perdi os principais momentos da minha vida e da vida da minha família, e em troca ganhei cabelos brancos, hipertensão e diabetes - os dois últimos, inclusive, nunca fui tratar, alegando a falta de tempo. Tudo por causa do maldito ouro, que agora me servia por chão. Trabalhei muito, enriqueci pouco e enriqueci a muitos, tudo por causa da esperança em alcançar reconhecimento, promoções, um melhor salário que me faria sair da "classe média" que tanto odiava.
Eu odiava esse nome - médio. Ele não é grande, nem pequeno, é médio. Dá a ideia de algo incompleto. "Você paga impostos como um rico, e vive como um pobre", murmurava eu dentro do meu carro médio, durante o engarrafamento da cidade média onde vivia. De fato: era um cidadão de classe média, com uma formação media, em um emprego médio, numa empresa media localizada em uma cidade media. Eu, inclusive, morava no Brasil - não tão rico como os States e nem tão pobre quanto o Congo. Logo, um país médio.
Mas agora, vendo que o ouro que tanto idolatrei virou calçamento, pude então entender o sentido das coisas. Pude entender que ele estava ali, no chão, não pra decorar e valorizar o ambiente, mas sim para me mostrar que o maior ídolo dos homens não passa de chão por aqui, nesse local superior.
Então senti uma angústia mortal. Passei a odiar esse ouro, e a mim mesmo. Odiei todas as escolhas erradas que fiz. Me amargurei. Então pedi a Deus uma nova chance. Queria voltar e fazer tudo novo. Queria mudar minhas escolhas. Queria viver meus filhos e amar minha esposa. Queria ver o por e o nascer do sol. Queria cultivar amigos e ajuda-los. Queria ler um livro, tocar um instrumento, pintar as paredes do quarto da minha filha de rosa, e ver o sorriso estampado no rosto dela. Queria dar verdadeiras noites de amor e verdadeiros dias de companhia à minha querida esposa...
Queria viver de novo. Queria acordar...
E acordei. Às 5 o relógio despertou e acordei impressionado com o sonho que tivera. Por cinco minutos refleti sobre aquele sonho. Um sinal? Um recado do Divino? Não sei. Tudo o que sabia era que queria e poderia mudar tudo. Poderia jogar as crianças e a esposa no carro, poderia descer à praia e começar uma vida nova, naquela mesma hora.
Então o celular tocou mais uma vez. Desliguei o soneca, acessei a minha agenda e vi quão cheio seria aquele feriado: reunião na empresa. Na verdade, nem precisaria ir, estava dispensado daquela reunião. Mas seria a minha oportunidade de mostrar proatividade diante do gerente novo, e quem saber alcançar uma promoção no ano que vem.
Assim, eu liguei o soneca: levantei, pus minha gravata como que coloca uma coleira, e fui. Afinal, tudo o que tive naquela noite foi apenas um sonho...
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Contos Bíblicos
SpiritualE se você tivesse que fugir do seu bairro às pressas, com a sua mulher e o Salvador nos braços, para O livrar da morte? E se você acordasse no "vale da sombra da morte" do Salmo 23? "Contos Bíblicos" segura a nossa mão e nos leva para dentro da Bí...