Prólogo

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Dezesseis anos atrás

O cheiro de terra úmida é evidente até quando as cidades não tem terra alguma. Como se o vento trouxesse em suas asas a verdadeira essência da chuva, não se importando se você está perto de onde ela cai, ou preocupado demais para perceber como esse curso natural é indissolúvel. Naquele momento, Noah ouvia a água caindo no telhado de alumínio que ampliava o barulho, como se fossem rajadas de tiros, e não água que caia do céu. Pelo menos, a metáfora assassina era o que se passava em seu coração.

Doze homens estavam embaixo daquela marquise prateada. Era uma noite sombria, com nuvens de horizontes infinitos. As lanternas funcionavam como única fonte de luz forte o suficiente para não permitir que alguém tropeçasse e caísse na rua cheia de pedras, e ainda assim Noah tinha um arranhão na mão direita. Quando se está no escuro, qualquer fonte de luz pode ser um tropeço assustador.

Big Efe estava ao seu lado, com os cabelos pingando na blusa branca, marcando o corpo de modo exagerado, e ele parecia não ligar. Pela primeira vez na vida, Noah o via sem um pingo de preocupação com sua aparência impecável. Os olhos claros varrendo o horizonte com desnorteamento, e as mãos fechadas na lanterna, contendo o medo que habitava dentro dele. Era o mesmo medo que habitava Noah.

No chão, em cima de um tapete árabe desgastado, Joseph se dirigia a Meca em suas orações imperturbáveis. Embaixo da chuva, mesmo que protegido parcialmente pela marquise de alumínio, ele não se abalava. Alá o protegeria de todos os males, assim era o que ele dizia. E foi isso que ele gritou para Big Efe quando o homem o questionou sobre o momento inoportuno de oração. Noah normalmente estava sempre a favor de Joseph, mas naquele dia a última coisa que ele pensava era em que direção Meca ficava, e se o deus dele iria resolver aquela situação. Mas imaginou que se ele resolvesse, garantiria que o resto da sua vida fosse voltada para Meca com um tapete mágico de Aladim.

Outros nove homens se dividiam entre amigos e policiais. Quando a filha de um importante político desaparecia, os amigos brotavam aos montes. Noah tinha total consciência de que metade deles não sabia nem o nome de Bekah, e achava uma bela hipocrisia que eles agora parecessem tão preocupados com ela. Logo perto da época em que Big Efe escolheria a equipe para a próxima campanha.

Um policial alto entortou a boca para Joseph no chão, e acendeu um cigarro fedorento que iluminou sombriamente a parede do lado oposto, onde Leandro se encolhia com o capuz na cabeça. Big Efe tinha proibido que ele viesse, mas Leo nunca foi bom em seguir regras, exatamente como Noah também não era.

Quando o vereador saiu com os policiais, ambos pegaram suas lanternas na casa da árvore do quintal de Noah e os seguiram. Joseph soltou um "eu avisei" para Big Efe, que suspirou e disse que os garotos só poderiam ficar se não atrapalhassem. Como se Noah sequer tivesse pensado na possibilidade de ficar em casa enquanto todos procuravam Bekah. Nem a chuva torrencial que caia o seguraria. E certamente que ver a mãe em choque em casa não servia de motivo para permanecer por lá. Noah não era o tipo de garoto que sentava num canto e esperava as coisas acontecerem, e esse era o motivo pelo qual seu coração estava tão alvoroçado naquelas últimas horas. Foi por causa de um "sentar e esperar" que Bekah havia sumido. Por conta de um minuto sendo só um menino em frente ao vídeo game.

— Largue essa porcaria de carta. – Big Efe falou irritado ao lado de Noah, que parou de mexer por um segundo no cinco de ouros em sua mão, e voltou a passá-lo pelos dedos no segundo seguinte. Tinha alguns meses que ele ignorava ter que obedecer ao homem ao seu lado. Desde que Big Efe resolveu que ter uma nova família significava trair a esposa doente e abandonar seus dois filhos.

— Deixe o menino, Efraim. – Joseph murmurou enquanto levantava do tapete e o dobrava, empurrando-o no bolso externo da jaqueta. – Essa chuva não vai diminuir. – informou categórico - Estamos parados aqui perdendo tempo.

Improváveis Deslizes (Degustação)Where stories live. Discover now