Capítulo 2

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Zoe

Meu professor de estudos da luz dizia que ninguém olhava o mundo como um fotógrafo. Que a perspectiva da tela pequena onde colocávamos o olho era nossa medida da vida naquele momento. Como se tudo de mais importante em uma determinada situação tivesse que estar ali dentro, mesmo que o tudo fosse bem pouco.

Sorri enquanto acenava para uma garotinha sentada num canto, isolada do resto das pessoas pelo salão. O ambiente não era para crianças, e as poucas que tinham pareciam ter sido treinadas para não se comportarem como crianças.

Elas sentavam com suas roupas apertadas e comiam doces até não poder mais. Aquela era a única coisa que podiam fazer ali dentro sem receber olhares de advertência e castigos lendários. Eu bem as entendia. Já tinha passado por isso e me lembro do quão entediante achava ter que vir para essas festas todas as vezes que minha mãe não encontrava com quem nos deixar, ou queria nos exibir como um animal premiado.

Foi a loirinha com a boca suja de brigadeiro que chamou a atenção do meu olho clínico de fotógrafa. Num evento de políticos ter foto de políticos era o óbvio. Contudo eu fugia do óbvio quando se tratava de fotografar, e foram os dedos e o rosto dela melados de doce que saíram na tela da minha câmera. Eu jamais via um único ângulo de um evento, e talvez por isso fosse boa no que fazia.

Amanhã as pessoas publicariam fotos dos outros fotógrafos em colunas de economia e política nacional. E outra pessoa, talvez Letícia, publicaria sobre crianças que eram filhas de economistas e políticos nacionais. Era outra perspectiva, e uma que me agradava.

Uma mulher exuberante se aproximou da garotinha, cobrindo mais fotos que eu pudesse tirar, e limpou a boca dela com um guardanapo, colocando força demais no gesto e fazendo a menininha baixar os olhos, provavelmente por ter levado uma bronca. Aquelas pessoas não gostavam que seus filhos fossem vistos cometendo qualquer ato humano, porque para eles ser um humano era banal demais.

Levantei contrariada pela intromissão, mas muito certa de que arranjaria um jeito de publicar aquela foto em homenagem a garotinha envergonhada por ser apenas uma garotinha.

— Se mamãe ver essa sua câmera clicando por aqui, você terá problemas.

Virei o rosto e suspirei para Emily, que tinha se aproximado com um copo de coquetel de frutas nas mãos e um sorriso alegre. Estava num vestido oriental azul claro e os cabelos presos em palitos alegóricos, típicos dela.

Minha irmã era daquelas que exalavam alegria até quando estava séria. Era simpática e todos a amavam espontaneamente. Até o sorriso dela emanava diversão. Eu tinha muita inveja disso.

— Quando é que eu não tenho problemas com a mamãe? – Perguntei diminuindo a velocidade do obturador da câmera para fotografar a banda elegante no palco.

— Isso é verdade. Mas hoje ela parece estar maluca de nervosismo. – Emily completou para mim, mas sorrindo abertamente para uma senhora de cabelos curtos e brancos que vinha em nossa direção. – Dona Aurora, que felicidade revê-la! Como tem passado? E seu neto, conseguiu ir para o intercâmbio?

Eu revirei os olhos atrás do visor da câmera e voltei a fotografar enquanto Emily falava com a velha sobre o neto dela que estava no Canadá, e a velha retrucava dizendo que minha irmã ficava linda com aquele vestido. Eu concordava.

— A senhora já conhece minha irmã, Zoe? – Eu respirei fundo e me voltei para as duas, colocando um sorriso no rosto.

— Como vai, dona Aurora?

Estendi a mão e a velha usou o braço da bengala para apertar meus dedos. Tinha mãos delicadas e olhos sinceros.

— Você é a pequena Zoe? – Ela perguntou curiosa, olhando dos meus cabelos para as tatuagens que cobriam meu ombro e braço. – Nossa, como você está... crescida!

Improváveis Deslizes (Degustação)Where stories live. Discover now