São 9 horas da manhã. Hoje acordei bem, com energia, uma energia que já não sentia há imenso tempo. Normalmente acordo sem vontade para enfrentar o dia, mas hoje apetece-me sair da cama. Isto é tão estranho, mas ao mesmo tempo uma sensação tão boa. A sério que já não me lembrava o que era sentir-me assim, com vontade para… viver, suponho.
Não sei bem porque é que isto me está a acontecer, mas acho que gosto.
Saio do quarto e vou tomar o pequeno-almoço.
“Bom dia minha querida” a minha tia diz quando chego à cozinha.
“Bom dia tia” eu respondo com um sorriso. Acho que é a primeira vez que lhe demonstro algum tipo de simpatia. Nunca foi por mal a minha arrogância para com ela. Mas eu simplesmente tenho andado assim ultimamente.
“Queres ir a algum sítio, comprar alguma coisa, ou assim? Eu e o teu tio vamos até à vila, se quiseres podes vir connosco” ela oferece.
“Não estou a precisar de nada. Obrigada pelo convite, mas acho que vou ficar por cá. Talvez vá fazer uma caminhada pela praia.” Eu respondo enquanto olho pela janela. Está uma manhã maravilhosa, o sol, a praia, é tudo tão bonito. E eu tenho vindo a descobrir que caminhar pela areia junto ao mar é das melhores coisas que se pode fazer. Mesmo para quem tem pouco tempo de vida.
“Oh, é pena querida, mas tudo bem” ela responde. Noto um certo tipo de desapontamento na sua voz, não a queria magoar, mas a praia continua a ser muito mais apelativa do que um passeio com os meus tios.
Depois de os meus tios saírem, dirigi-me até à praia. O Liam só me vem buscar no fim de almoço, por assim tenho bastante tempo para estar por aqui.
O Liam. É inacreditável como em todos estes dias, desde que cá cheguei, o Liam tem estado sempre presente. Como ele já me fez sentir das mais variadas maneiras. Mas a verdade é que ele foi o único que conseguiu divertir-me. Acho porque, no fundo, ele compreende-me. Ou tenta pelo menos compreender. Porque ele não me repreende, não julga tudo o que faço, não me diz para ter cuidado, não me lembra a toda a hora que tenho cancro.
Sinto a água fria molhar-me os pés descalços. Foi também o Liam que no outro dia apareceu quando o suicido estava presente na minha mente. Não sei mesmo se chegaria a fazê-lo. Mas naquela hora fazia tanto sentido. Pensar nisso deixa-me confusa. Não quero. Quero apenas aproveitar que acordei bem, e continuar assim, antes que os meus pensamentos pessimistas regressem.
Quando dou por mim, já estou a caminhar há mais de uma hora, o que significa o mesmo tempo para regressar a casa. É melhor ir andando, ainda tenho que almoçar, para depois ir com o Liam.
…
No fim de almoçar troco de roupa e vou para fora esperar o Liam. Estou curiosa para saber o que vamos fazer hoje.
“Olá Amber!” ele diz quando chega à minha beira.
“A Daisy?” eu pergunto quando reparo que a cadela não está com ele.
“É bom saber que gostas assim tanto da minha companhia” ele diz.
“Não é isso. É só que tu costumas andar sempre com ela, e eu gosto quando ela está” eu sorrio. Gosto mesmo, acho que eu e a Daisy estabelecemos um tipo de relação afetiva, se é que isso é sequer possível.
“A Daisy hoje ficou por casa”
“oh”
“Mas nós vamos buscá-la, já que fazes assim tanta questão” ele diz, fingindo-se amuado.
Eu solto um sorriso de alegria, agindo como uma criança que está muito feliz.
“Onde vamos hoje?” eu pergunto enquanto caminhamos até casa do Liam.
“Muito curiosa tu.” Ele diz.
“Oh Liam, diz lá.” Eu imploro.
“Vamos conhecer a vila mais bonita de todo o mundo!”
“Vamos conhecer a vila?” não estou a ver onde é que isso pode ser divertido, mas não custa tentar. Aliás, o Liam consegue sempre surpreender-me.
Depois de termos ido buscar a Daisy, o Liam conduziu até à vila. Nunca lá tinha estado antes. Sempre que cá vim de férias ficava na praia. A praia sempre foi para mim um género de refúgio.
“Quando eu disser 3, começas a correr a toda a velocidade” o Liam disse de repente, quando estávamos a caminhar por uma pequena rua.
“Porquê?” eu perguntei confusa.
“Apenas faz o que eu te digo” ele responde.
De repente ele pára em frente a uma casa, toca à campainha e grita 3. Começamos a correr a toda a velocidade, até chegarmos a outra rua.
“O que é que foi aquilo?” eu pergunto ofegante.
“Não me digas que nunca fizeste isto”
“O quê? Tocar às campainhas e fugir? A sério? Isso faz sequer algum sentido?” eu pergunto. Realmente nunca tinha feito nada assim, nem sequer compreendo onde está a piada.
“Amber? Vá lá, isto é das coisas mais divertidas que há!” ele dizia super divertido.
“A sério?” continuava sem compreender, mas a sua alegria estava a tornar-se contagiante.
“Sim, agora experimentas tu!” ele desafia-me.
“Oh Liam…”
“Vá lá Amber!” o Liam implora, e a Daisy começa a ladrar como que querendo que eu o faço.
“Ok” eu digo e começo a caminhar em direção a uma casa próxima.
Vejo se não está ninguém por perto e toco à campainha. Começamos outra vez a correr, rindo às gargalhadas. Apesar de isto não fazer qualquer sentido, tem a sua piada.
Fizemos isto em muitas outras casas, houve algumas até em que os habitantes estavam por perto e nos atendiam. Aí tínhamos que fugir mais depressa. Mas era também aí que se tornava mais divertido.
Depois de percorremos praticamente todas as ruas da vila, fomos até um café comer um gelado.
“Juro-te que isto foi das coisas mais estúpidas que fiz!” digo a Liam, lembrando-me da cara das pessoas que nos abriram a porta.
“E mais divertidas também, certo?”
“Sim, suponho que sim” é verdade, foi divertido. Por momentos sentia-me uma autêntica criança, e ser criança é bom.
“As coisas mais simples podem ser as mais divertidas”
“E as mais estúpidas também” eu rio. Rir. Ri-me mais nestas últimas 48 horas, do que nos últimos meses todos juntos.
“Divertiste-te?” ele pergunta, olhando-me nos olhos.
“Sim, Liam. Diverti-me, muito” eu respondo com toda a minha sinceridade.
Quando terminámos o gelado, o Liam levou-me de volta para a casa dos meus tios.
“Até amanhã Amber” ele diz.
“Até amanhã Liam. Até amanhã Daisy” eu despeço-me, com um sorriso.
Sei que ele amanhã vai voltar, que vamos voltar a fazer coisas estúpidas. Mas no fim de tudo, o que eu quero mesmo é continuar a divertir-me, rir e sorrir como fiz hoje. Sinto-me diferente, mais leve, com mais vida.
Sei que isto não me vai dar mais tempo para viver, mas sei que má dá uma espécie de vida interior, uma energia.
E assim passou mais um dia em que praticamente não me lembrei do cancro, mais um dia que passou a correr, demasiado rápido. Parece impossível, mas já passaram 6 dias desde que aqui cheguei.