TEMPERAMENTO DE CONTISTA
No limiar dos 40 anos e com 5 livros de contos publicados, Caio Fernando Abreu se apresenta como um dos principais expoentes daquele gênero no Brasil. Sua estréia aconteceu em 1970, com o lançamento de Inventário do irremediável; a obra subseqüente foi O ovo apunhalado, de 1975; dois anos mais tarde, Pedras de Calcutá. Vieram depois Morangos mofados, de 1982, e Os dragões não conhecem o Paraíso, de 1988. No intervalo, Caio publicou um romance, Limite branco (1970), e um tríptico de novelas, Triângulo das águas (1983). Redigiu também peças de teatro, adaptou um romance para o palco, editou jornais e revistas; mas nunca deixou de produzir novos contos, gênero que, até agora, ata as duas pontas, a inicial e a presente, de sua performance como escritor.Sua propensão para a narrativa curta talvez decorra de fatores pessoais, um tipo de preferência ou necessidade: a pressa, o pouco tempo disponível para a elaboração dos textos, os apertos econômicos, a constante mobilidade podem ser as causas dessa grande incidência de contos na biografia literária de Caio Fernando Abreu. Todavia, independentemente dessas justificativas, o autor parece tender para o gênero, por ele responder melhor às suas inclinações estéticas, definidas pelo exame das marcas características de sua literatura. Essas só poderiam se realizar plenamente no conto, razão pela qual o escritor o utiliza com grande assiduidade.
Uma das marcas mais constantes diz respeito à criação quase que exclusiva de personagens anônimas. Caio Fernando Abreu via de regra designa os seres humanos que habitam as histórias tão-somente por intermédio dos pronomes pessoais. Quando não o faz, emprega formas descritivas, que identificam as pessoas por seus sinais externos. Em "fuga" apenas a menina que deveria acompanhar o protagonista tem nome; os demais são definidos por suas faixas etárias. o mesmo se verifica em "Os sapatinhos vermelhos": Adelina, a proprietária dos calçados mágicos, é batizada pelo narrador, mas seus parceiros masculinos são caracterizados a partir da percepção que a moça tem da aparência física deles.
O significado desse procedimento é claro: as pessoas estão esvaziadas de sua identidade, de modo que não há como nomeá-las. Este esvaziamento advém do modo de convivência determinado pela sociedade: tão competitivo que corrói a personalidade dos indivíduos. Mesmo quando excêntricos, eles se tornam parte da massa uniforme; por sua vez, a diluição no coletivo não impede a solidão e o abandono. O universo humano criado pelo escritor compõe-se de indivíduos tanto mais solitários, porque deles é retirada a possibilidade de, após terem- nos perdido, recuperarem os laços com o social, seja este representado por amigos, amantes ou membros da família.
A abdicação do nome sinaliza a perda de humanidade. Por isso, a identidade das personagens só aparece quando, como em "Sargento Garcia" ou "Aqueles dois", tem sentido simbólico, decifrado no próprio conto. Caso contrário, um mero pronome de primeira ou terceira pessoa indica de quem se fala naquela história. O mesmo o mesmo não acontece quando se mencionam animais: eles são, na maioria das vezes batizados, fato que é matéria de discussão em "Corujas", texto em que, simultaneamente, se nega ao leitor o nome do narrador, o indivíduo encarregado de rememorar os acontecimento. Em "Linda, uma história horrível", outra vez um animal dá título a narrativa, ostentando um princípio de identificação de que carecem os atores humanos, a mãe e o filho que se reencontram depois de longos anos.
Essa inversão acentua o processo de aniquilação da personagem experimentado pelos protagonistas das histórias. Em "Mel & Girassóis", reforça-se esse apagamento com o emprego dos sucessivos clichês narrativos; desse modo, não apenas os heróis não apresentam identidade e preferem acreditar no universo de fantasia hollywoodiana em que foram jogados; também o narrador deixa-se contaminar pelos estereótipos da cultura de massa que substituem a criatividade e diluem o estilo, sendo o traço que particulariza uma obra qualquer.
Somente um gênero narrativo viabiliza a apresentação de situações em que o mundo das personagens reduz-se a tão pouco, a personalidade estreita-se a tal ponto, a existência se espreme em semelhante rotina: o conto. A limitação da forma combina com a pequenez da vida dos seres representados, processo acentuado pela utilização de um foco narrativo uniforme. Com efeito, nos enredos de Caio Fernando Abreu, a focalização, em primeira ou terceira pessoa, é fixa, impedindo o leitor de conhecer mais que o universo interno de uma única personagem. Este fator isola ainda os indivíduos, pois nem ao nível narrativo o diálogo se instaura É o que mostra o conto "Pela passagem de uma grande dor": ainda que reproduzindo uma conversa telefônica, o ponto de vista fecha-se sobre um dos interlocutores, negando-nos a perspectiva do outro. A comunicação entre os dois torna- se ainda mais difícil, porque fica também obstruído o canal entre um dos protagonistas e o leitor.
Na maioria, estes contos narram histórias de partidas e retornos. Quando as personagens não estão se movendo no espaço, estão viajando no tempo: "Visita" e "Linda, uma história horrível" exemplificam o primeiro caso, "Corujas" e "Oásis", o segundo. A mobilidade dos protagonistas aparece também em "Garopaba, mon amour" ou "Para uma avenca partindo"; mas também "Sargento Garcia", "London, London" ou "Aconteceu na Praça XV" falam de seres em vias de partir ou que já chegaram. A memória é outro fator de deslocamento, por isso está presente tanto nas histórias de recordação, como "Oásis", quanto nos enredos centrados em heróis em trânsito, como "Garopaba, mon amour".
O peculiar é que esses contos só introduzem uma parte da jornada: as saídas não têm retorno, as voltas não revelam as razões da partida As narrativas se resumem sempre à metade dos acontecimentos, como se as causas ou as conseqüências desses fossem esquecidas ou perdidas em meio ao trajeto. A experiência dos protagonistas fica fragmentada e incompleta, este sendo um fator a mais a demarcar a estreiteza ou redução de seu universo existencial. E sendo um fator a mais a explicar por que o conto se apresenta como a forma preferida do escritor, o único capaz de traduzir o mundo segundo a maneira que os sujeitos o vivenciam.
O cosmos ficcional criado por Caio Fernando Abreu se particulariza por conter personagens para os quais o futuro não significa nada Quando eles partem, estão fugindo; quando retornam, estão se preparando para encontrar a morte: a de um ente querido, como em "Visita", a própria, como em "Linda, uma história horrível". É flagrante a ausência de um projeto existencial, circunstância coerente com o fato de os protagonistas constituírem seres sem identidade.
Apenas "Mel & girassóis" promete um começo feliz para os heróis; por isso, lida explicitamente com clichês, pois a felicidade e a realização amorosa só podem ocorrer sob tais condições. O projeto assume a feição déjà vue e tem seus efeitos atenuados. Ainda assim, o conto encerra com uma promessa, e o fato de converter o happy end em perspectiva de nova oportunidade singulariza o texto no conjunto das narrativas de Caio Fernando Abreu. Adota nova fisionomia, praticamente saltando do conto à novela; com isso, sugere o novo percurso a trilhar, que, sendo original, não desmente o anterior, assinalado pela manifestação do temperamento de contista, agora consagrado.
Regina Zilberman