Para Paula Dip
A primeira vez que o telefone tocou, ele não se moveu. Continuou sentado sobre a velha almofada amarela, cheia de pastoras desbotadas, com coroas de flores nas mãos. As vibrações coloridas da televisão, sem som, faziam a sala tremer e flutuar, empalidecida pelo bordo mortiço de cor de luxe de um filme antigo qualquer. Quando o telefone tocou pela segunda vez, ele estava tentando lembrar se o nome daquela melodia meio arranhada que vinha da outra sala era mesmo Desespero Agradável ou Por Um Desespero Agradável. De qualquer forma, pensou: desespero. E agradável. A luz de mercúrio da rua varava os orifícios das cortinas de renda misturando-se, azulada, à cor meio decomposta do filme. Um pouco antes do telefone tocar pela terceira
vez, ele resolveu levantar-se ― para conferir o nome da música, disse
para si mesmo, e caminhou para dentro, atravessando o pequeno
corredor onde, como sempre, a perna da calça roçou contra a folha rajada de uma planta. Preciso trocá-la de lugar, lembrou, como sempre. E um pouco antes ainda de estender a mão para pegar o telefone sobre a mesa, inclinou-se sobre as capas dos discos espalhadas pelo chão, entre um cinzeiro cheio e um caneco de cerâmica crua, quase vazio, a não ser por uns restos no fundo, que vistos assim de cima formavam uma massa verde, úmida e compacta. Désespoir Agréable, confirmou. Ainda em pé, colocou a capa branca do disco sobre a mesa, enquanto repetia mentalmente: de qualquer forma desespero, e agradável.― Lui? ― a voz conhecida. ― Alô? É você, Lui?
― Eu ― ele disse.
― O que é que você está fazendo?
Ele sentou-se. Depois estendeu o braço para a frente e olhou a palma aberta da própria mão. As pequenas áreas descascadas, ácido úrico, diziam, corroendo lento a pele.
― Alô? Você está me ouvindo? Perguntei o que é que você estava fazendo.
― Oi ― ele falou. ― Fazendo? Nada. Aí, ouvindo música. Televisão. ― Fechou a mão. ― Agora ia fazer um café. E dormir.
― Alô?
― Mas não sei se tem pó.
― O quê?
― Nada, bobagem. E você?Do outro lado, ela suspirou sem dizer nada. Então houve um silêncio curto e, em seguida, um ruído seco e uma espécie de sopro. Deve ter acendido um cigarro, ele pensou. Dobrou mecanicamente o corpo para a esquerda, até trazer o cinzeiro cheio de pontas para o lado do telefone.
― Que foi que houve? ― perguntou lento, olhando em volta, à procura de um maço de cigarros.
― Escuta. Você não quer dar uma saída?
― Estou cansado. Não tenho cabeça. E amanhã preciso acordar muito cedo.
― Mas eu passo aí com o carro. Depois deixo você de novo. A gente não demora nada. Podia ir a um bar, a um cinema, a um.
― Já passa das dez ― ele disse. A voz dela ficou um pouco mais aguda:
― E vir aqui. Também você não quer, não é? Tenho uma vodka ótima. Daquelas. Você gosta, nem abri ainda. Só não tenho limão. Você traz? ― A voz ficou subitamente tão aguda que ele afastou um pouco o fone do ouvido. Por um momento, ficou ouvindo a melodia distante, lenta e arranhada do piano. Através dos vidros da porta, com a luz acesa nos fundos, conseguia ver a copa verde das plantas no jardim, com algumas folhas amareladas no chão. Sem querer, quase estremeceu de frio. Ou uma espécie de medo. Esfregou a palma seca da mão esquerda contra a coxa. A voz dela ficou mais baixa. ― E se eu fosse até aí?Os dedos dele tocaram o maço de cigarros no bolso da calça. Então contraiu o ombro direito, apertando o fone contra o rosto, e puxou devagar o maço.
― Sabe o que é ― disse.
― Lui?Com os dentes, prendeu um dos cigarros. Mordeu-o, leve.
― Alô? Lui? Você está aí?
Contraiu mais o ombro para acender o cigarro. O fone quase desequilibrou. Tragou fundo. Retomou o fone e soltou, lentamente, o ombro, soprando a fumaça.