Para Silvia Simas
― Dançarás ― disse o anjo. ― Dançarás
com teus sapatos vermelhos... Dançarás de
porta em porta... Dançarás, dançarás sempre.
Andersen, "Os sapatinhos vermelhos"
Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da
gente, sempre sabe exatamente quando termina - ela repetiu olhando-se bem nos olhos, em frente ao espelho. Ou quando começa: certo susto na boca do estômago. Como o carrinho da montanha-russa, naquele momento lá no alto, justo antes de despencar em direção. Em direção a
quê? Depois de subidas e descidas, em direção àquele insuportável
ponto seco de agora.Restava acender o cigarro, e foi o que fez. No momento de dar a
primeira tragada, apoiou a face nas mãos e, sem querer, esticou a pele
sob o olho direito. Melhor assim, muito melhor. Sem aquele ar desabado de cansaço indisfarçável de mulher sozinha com quase quarenta anos, mastigou sem pausa nem piedade. Com os dedos da mão esquerda, esticou também a pele debaixo do outro olho. Não, nem tanto, que assim parecia uma japonesa. Uma japa, uma gueixa, isso é que fui. A putinha submissa a coreografar jantares à luz de velas ― Glenn Miller ou Charles Aznavour? ―, vertendo trêfega os sais ― camomila ou alfazema? ― na água da banheira, preparando uísques ― uma ou duas
pedras hoje, meu bem?Nenhuma pedra, decidiu. E virou a garrafa outra vez no copo. Aprendera com ele, nem gostava antes. Tempo perdido, pura perda de tempo. E não me venha dizer mas teve bons momentos, não teve não? A cabeça dele abandonada em seus joelhos, você deslizando devagar os dedos entre os cabelos daquele homem. Pudesse ver seu próprio rosto: nesses momentos você ganhava luz e sorria sem sorrir, olhos fechados, toda plena. Isso não valeu, Adelina?
Bebeu, outro gole, um pouco sôfrega. Precisava apressar-se, antes
que a quinta virasse Sexta-Feira Santa e os pecados começassem a pulular na memória feito macacos engaiolados: não beba, não cante, não fale nome feio, não use vermelho, o diabo está solto, leva sua alma para o inferno. Ela já está lá, no meio das chamas, pobre alminha, nem dez da noite, só filmes sacros na tevê, mantos sagrados, aquelas coisas, Sexta-Feira da Paixão e nem sexo, nem ao menos sexo, isso de meter, morder, gemer, gozar, dormir. Aquela coisa frouxa, aquela coisa gorda, aquela coisa sob lençóis, aquela coisa no escuro, roçar molhado de pêlos, baba e gemidos depois de ― quantos mesmo? ― cinco, cinco anos. Cinco anos são alguma coisa quando se tem quase quarenta, e nem apartamento próprio, nem marido, filhos, herança: nada. Ponto seco, ponto morto.Ué, você não escolheu? Ele ficou então parado à frente dela, muito
digno e tão comportadamente um-senhor-de-família-da-Vila-Mariana dentro do terno suavemente cinza, gravata pouco mais clara, no tom exato das meias, sapatos ligeiramente mais escuros. Absolutamente controlado. Nem um fio de cabelo fora do lugar enquanto repetia pausado, didático, convincente ― mas Adelina, você sabe tão bem quanto eu, talvez até melhor, a que ponto de desgaste nosso relacionamento chegou. Devia falar desse jeito mesmo com os alunos,
impossível que você não perceba como é doloroso para mim mesmo
encarar este rompimento. Afinal, a afeição que nutro por você é um fato.Teria mesmo chegado ao ponto de dizer nutro? Teria, teria sim, teria dito nutro & relacionamento & rompimento & afeto, teria dito também estima & consideração & mais alto apreço e toda essa merda
educada que as pessoas costumam dizer para colorir a indiferença quando o coração ficou inteiramente gelado. Uma estalactite ― estalactite ou estalagmite? merda, umas caíam de cima; outras subiam de baixo, mas que importa: aquela lança fininha de gelo afiado - cravada, com extrema cordialidade no fundo do peito dela. Vampira, envelheceria séculos lentamente até desfazer-se em pó aos pés impassíveis dele. Mas ao contrário, tão desamparada e descalça, quase nua, sem maquilagem nem anjo de guarda, dentro de uma camisola velha de pelúcia, às vésperas da Sexta-Feira Santa, sozinha no
apartamento e no planeta Terra.