SARGENTO GARCIA

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                         SARGENTO GARCIA
            À memória de Luiza Felpuda

                                1
   ― Hermes.. ― O rebenque estalou contra a madeira gasta da mesa. Ele repetiu mais alto, quase gritando, quase com raiva: ― Eu chamei Hermes. Quem é essa lorpa?

   Avancei do fundo da sala.
   ― Sou eu.
   ― Sou eu, meu sargento. Repita.

   Os outros olhavam, nus como eu. Só se ouvia o ruído das pás do ventilador girando enferrujadas no teto, mas eu sabia que riam baixinho, cutucando-se excitados. Atrás dele, a parede de reboco descascado, a janela pintada de azul-marinho aberta sobre um pátio cheio de cinamomos caiados de branco até a metade do tronco. Nenhum vento nas copas imóveis. E moscas amolecidas pelo calor, tão tontas que se chocavam no ar, entre o cheiro da bosta quente de cavalo e corpos sujos de machos. De repente, mais nu que os outros, eu: no cen- tro da sala. O suor escorria pelos sovacos.
 
   ― Ficou surdo, idiota?
   ― Não. Não, seu sargento.
   ― Meu sargento.
   ― Meu sargento.
   ― Por que não respondeu quando eu chamei?
   ― Não ouvi. Desculpe, eu...
   ― Não ouvi, meu sargento. Repita.
   ― Não ouvi. Meu sargento.

   Parecia divertido, o olho verde frio de cobra quase oculto sob as sobrancelhas unidas em ângulo agudo sobre o nariz. Começava a odiar aquele bigode grosso como um manduruvá cabeludo rastejando em volta da boca, cortina de veludo negro entreaberta sobre os lábios molhados.

   ― Tem cera nos ouvidos, pamonha?

   Olhou em volta, pedindo aprovação, dando licença. Um alívio percorreu a sala. Os homens riam livremente agora. Podia ver, à minha direita, o alemão de costela quebrada, a ponta quase furando a barriga sacudida por um riso banguela. E o saco murcho do crioulo parrudo.
   ― Não, meu sargento.
   ― E no rabo?

   Surpreso e suspenso, o coro de risos. As pás do ventilador voltaram a arranhar o silêncio, feito filme de mocinho, um segundo antes do tiro. Ele olhou os homens, um por um. O riso recomeçou, estridente. A ponta da costela vibrava no ar, um acidente no roça com minha ermón. Imóveis, as folhas bem de cima dos cinamomos. O saco murcho, como se não houvesse nada dentro, sou faixa preta, morou? Uma mosca esvoaçou perto do meu olho. Pisquei.

   ― Esquece. E não pisca, bocó. Só quando eu mandar.

   Levantou-se e veio vindo na minha direção. A camiseta branca com grandes manchas de suor embaixo dos braços peludos, cruzados sobre
o peito, a ponta do rebenque curto de montaria, ereto e tenso, batendo ritmado nos cabelos quase raspados, duros de brilhantina, colados ao crânio. Num salto, o rebenque enveredou em direção à minha cara, desviou-se a menos de um palmo, zunindo, para estalar com força nas botas. Estremeci. Era ridícula a sensação de minha bunda exposta, branca e provavelmente trêmula, na frente daquela meia dúzia de homens pelados. O manduruvá contraiu-se, lesma respingada de sal, a cortina afastou-se para um lado. Um brilho de ouro dançou sobre o canino esquerdo.

   ― Está com medo, molóide?
   ― Não, meu sargento. É que.

   O rebenque estalou outra vez na bota. Couro contra couro. Seco. A sala inteira pareceu estremecer comigo. Na parede, o retrato do marechal Castelo Branco oscilou. Os risos cessaram. Mas junto com o zumbido do sangue quente na minha cabeça, as pás ferrugentas do ventilador e o vôo gordo das moscas, eu localizava também um ofegar seboso, nojento. Os outros esperavam. Eu esperava. Seria assim, um cristão na arena? pensei sem querer. O leão brincando com a vítima, patas vadias no ar, antes de desferir o golpe mortal.

Mel & GirassóisOnde histórias criam vida. Descubra agora