OÁSIS

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                                                  OÁSIS
                   Para José Cláudio Abreu,
        Luiz Carlos Moura e o negrinho
                                                     Jorge

  

   A brincadeira não era difícil: bastava que nos concentrássemos o suficiente para conseguirmos transformar tudo que havia em volta. E treinados como estávamos nas imaginações mais delirantes, era relativamente fácil avistar um deserto na rua comprida e um oásis no arco branco do portão do quartel, lá no fundo. Algumas vezes tentamos iniciar um ou outro guri da nossa idade, mas eles não conseguiam nunca chegar até o fim. Os mais persistentes alcançavam a metade do caminho, mas era mais comum rirem de saída e irem cuidar de outra coisa. Talvez porque, ao contrário de nós três, nunca houvessem visto o quartel por dentro, com seus lagos, cavalos, alamedas calçadas, eucaliptos, cinamomos, soldados.

   Acho mesmo que foi naquela tarde em que visitamos o quartel pela primeira vez que a brincadeira nasceu. Absolutamente fascinados, sentimos necessidade de vê-lo mais e mais vezes, principalmente ficamos surpresos por não termos jamais imaginado quantas maravilhas se escondiam atrás daquele portão branco, e tão tangíveis, ali, no fim da rua de nossa casa. Não sei de quem partiu a idéia mas, seja de quem foi, ele foi muito sutil ao propô-la, disfarçando a coisa de tal jeito que não suspeitamos tratar-se de apenas um pretexto para visitar mais vezes o quartel. Claro que não confessaríamos claramente nosso fascínio, tão empenhados andávamos em, constantemente, simular um fastio em relação a todas as coisas. Fastio esse que, para nós, era sinônimo de superioridade.

   Era preciso bastante sol para brincar ― fazíamos questão de ficar empapados de suor e de sentirmos sobre as cabeças aquela massa amarela quase esmagando os miolos. Era preciso também que não houvesse chovido nos dias anteriores, pois por mais hábeis que fôssemos para distorcer pequenos ou grandes detalhes, não o éramos a ponto de aceitar um deserto lamacento. Quando todas essas coisas se combinavam, a proposta partia de qualquer um de nós.

   Brincar de oásis era a senha, e imediatamente caíamos no chão, ainda desacordados com o choque produzido pela queda do avião onde viajávamos, depois lentamente abríamos os olhos e tateávamos em volta, no meio da rua, tocando as pedras escaldantes da hora de sesta. Quase sempre Jorge voltava a fechar os olhos dizendo que preferia morrer ali mesmo do que ficar dias e dias se cansando à toa pelo deserto. E quase sempre eu apontava para o arco no fim da rua, dizendo que se tratava de um oásis, que meu avião já havia caído lá uma vez e que, enfim, tinha experiência de caminhadas no deserto. Em seguida Luiz investigava os bolsos e apresentava algum biscoito velho, acrescentando que tínhamos víveres suficientes para chegar lá. Convencido Jorge, tudo se passava normalmente. Aos poucos nossas posturas iam decaindo: no fim da primeira quadra, tínhamos os ombros baixos, as pernas moles ― na altura do colégio das freiras começávamos a tropeçar e, para não cair, nos segurávamos no muro de tijolos musguentos.

   A partir do colégio as casas rareavam, e além de algumas pensões de putas não havia senão campo, cercas de arame farpado e a poeira solta e vermelha do meio da rua. Então, sem nenhum pudor, andávamos nos arrastando enquanto algumas daquelas mulheres espantosamente loiras nos observavam das janelas por baixo das pálpebras azuis e verdes, pintando as unhas e tomando chimarrão em baixo das parreiras carregadas. Tudo se desenvolvia por etapas que eram vencidas sem nenhuma palavra, sem sequer um olhar. Raramente alguém esquecia alguma coisa. Apenas uma vez Jorge não resistiu e, interrompendo por um momento a caminhada, pediu um copo d'água para uma daquelas mulheres. Eu e Luiz nos entreolhamos sem falar, escandalizados com o que julgávamos uma imperdoável traição. Mas a tal ponto nos comunicávamos que, mal voltou, a água ainda pingando do queixo, Jorge justificou-se com um sorriso deslavado:

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