Capítulo 1 - A Criança Indesejada

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A noite estava fria e sossegada. Podia-se ouvir o crocitar dos corvos que causavam alvoroço nas torres do castelo e a passada firme de criaturas da floresta que voltavam para toca ao alvorecer. Assim eram as madrugadas em Zovra, exceto pelo escarcéu que os Silvertom faziam ao descobrir que Bram, o unigênito da família, engravidara uma pobre camponesa.

– O que você espera? – Perguntou a senhora Silvertom. – Que coloquemos aquela mulherzinha dentro da nossa casa?

Ginebra, uma senhora esguia e carrancuda de cabelos negros, expelia ódio ao assistir sua família beirando o fundo do poço. Não estava em seus planos que seu único filho se envolvesse com uma ralé. Evanora, quem engravidara de Bram, não tinha sobrenome de peso em Zovra. De fato, nem os próprios Silvertom tinham o mínimo de relevância. Mas Ginebra iludia-se ao pensar que um dia descansaria na Casa do Corvo.

– Como pôde fazer isso conosco? – Ginebra choramingava. – Engravidar aquela aberração?

– Não fale assim de Evanora – disse Bram, paciente. – Eu não estou pedindo que nos aceite dentro de sua casa. Eu só estou avisando-os que serão avós.

– Eu não vou permitir que você nos destrua – declarou sua mãe. – Não se eu ainda estiver viva.

– Não há nada para ser destruído nessa família, mãe – Bram retrucou, pegando suas trochas e a deixando sozinha com o seu pai inválido. – Nunca houve.

Bram deixou o conforto que ainda lhe restava na casa dos Silvertom. Estava decidido que seguiria ao lado de Evanora, e foi o que fez. As vilas em Zovra não comentavam outra coisa. Todos debochavam de Ginebra, que se gabava ao falar do filho e do futuro promissor que ele teria. A velha não saia de casa há mais de meses, e corriam boatos de que ela havia morrido de desgosto. Alguns diziam que ela estava tão inválida quanto o pai de Bram. Que deixara de comer e beber e passava os dias petrificada em cima da cama.

Bram já não era mais bem-vindo em casa, ainda que insistisse em ver os pais. Deixara de visitá-los com a frequência de antes e só passava para deixar uma mesada para que eles pudessem se manter. As vizinhas diziam que Ginebra enterrava todas as moedas deixadas pelo filho e que para ela, Bram estava morto.

Na noite em que Evanora viera dar à luz, Zovra chovia como nunca havia acontecido antes. As pancadas de chuva abafam os gritos de Evanora, que não tirava os olhos da porta a espera do marido até então desaparecido.

– Por favor, Bethe, vá chamá-lo – Eva implorou. E Bethe atendeu ao seu pedido.

Pandora mantinha-se ao lado de Evanora, dando-lhe a mão, enxugando sua testa suada e tentava acalmá-la. Azura, a parteira, pedia para que Eva se concentrasse e seguisse suas indicações para que nada de ruim acontecesse a criança.

Sob uma noite tempestuosa, Bethe corria até a casa dos Silvertom na esperança de encontrar Bram. Batia freneticamente na porta, com vestido lamacento e suas madeixas loiras encharcadas. Já não conseguia abrir os olhos ao debater-se de frio, quase congelando com toda água que a cobria. Não pôde fazer outra coisa a não ser invadir aquela propriedade, mas arrependeu-se ao se deparar com os três corpos mutilados que agonizavam na sala dos Silvertom. Ginebra, seu marido inválido e Bram estavam mortos. Suas gargantas haviam sido cortadas e naquele instante serviam de aperitivo para as moscas que os assistiam definhar.

•••

Próximo a floresta, um grito de dor aguda reverberava por todo ambiente. Evanora se contorcia sobre uma espécie de cama feita de palha e folhas, enquanto Pandora auxiliava Azura no parto. A parteira mantinha-se atenta aos movimentos de Eva, que se mostrava ansiosa e assustada. Era uma noite de muita tensão e o clã estava prestes a ganhar uma nova integrante.

Assim foram os instantes que antecederam a volta de Bethe ao casebre.

– Bethe! – disse Pandora, ao vê-la abrir a porta agressivamente toda encharcada.

A bruxa olhou em volta e viu que Evanora ainda dormia. Azura carregava uma criança nos braços e Pandora preparava algo no caldeirão. Bethe mantinha-se espantada, seu rosto congelado o impedia de dizer sequer uma palavra. Pandora sorria para Bethe, entretanto a mesma continuava com sua expressão congelada, seus olhos azuis se arregalavam como quem acabara de sofrer um acidente.

– Aconteceu alguma coisa, Bethe? – Pandora havia perguntado enquanto preparava uma sopa no caldeirão.

Num movimento sutil feito com os dedos, Bethe arrastou uma cadeira e sentou-se, ainda aos prantos.

– Bram – ela disse, com o coração prestes a explodir. – Bram está morto!

Pandora viu-se trêmula e incrédula ao ouvir o que Bethe havia dito.

– Isso mesmo – Bethe reafirmou. – Todos os Silvertom estão morto.

– Como isso é possível? – dizia Pandora, temendo acreditar.

A ruiva fitou uma cadeira e a atraiu com os olhos, sentando-se ao lado de Bethe.

– Quem os mataram? – Azura interrompeu, ao entrar com um bebê no colo.

– Eu não sei – as lágrimas de Bethe desciam continuamente. – Os seus pescoços estavam cortados como... – ela soluçava. – Como de animais.

– Não conte a Evanora – declarou Azura. – Não agora, ela precisa se recuperar.

Pandora e Bethe a olharam com dor, assentindo.

Evanora acordou algumas horas depois, seu corpo ainda estava dolorido e seus olhos buscavam a pequena Helena. Ao receber a notícia do que acontecera a Bram, Evanora caiu em estado de completo silêncio, não falava durante semanas. Estava totalmente apática. Só Helena conseguia fazê-la sorrir, mas esse evento ainda era raro. Bethe e Pandora adentraram o quarto de Eva afim de pôr em hiato aquele comportamento que estava a destruindo.

Evanora as encarou e sorriu de leve.

– Precisamos lhe contar como aconteceu.

– Eu não quero saber, está tudo acabado – Eva olhava um ponto fixo. – Ele nem pôde ver a filha. Pobre Bram – lamentou.

– Você precisa nos ouvir, Eva – Bethe aproximou-se dela.

– É verdade – interviu Pandora. – Estão comentando na vila que a própria Ginebra planejou o assassinato.

– Eu não quero conversar sobre isso, não agora – disse Evanora, dando-lhes as costas.

– Eva, olhe para mim – Pandora choramingou. – Há semanas que perdemos você...

– Seus poderes não irão funcionar comigo.

– Eu não estou querendo manipulá-la – Pandora mentiu.

– Já chega! – Bethe segurou firme no braço da bruxa amargurada. – Você precisa voltar! Tem alguém precisando de você – bradara. – A sua filha precisava de você. Ou você quer que ela morra? – A bruxa dos cabelos dourados a olhava enfurecida. Ou prefere você mesmo se afogar no fundo do poço e a deixar sem pai e mãe?

– Quem você pensa que é para dizer como eu devo reagir a morte do homem que amei e tive uma filha? – Eva a olhou odiosa.

Evanora estava com sangue nos olhos. Seu corpo fervia, a fazendo arremessar Bethe contra as prateleiras, espalhando pelo chão diversos fracos de poções que se quebraram sobre o corpo de Bethe. A bruxa levantou-se no mesmo instante, trazendo uma faca com um rápido movimento feito com os olhos. A faca pairou sobre a testa de Evanora, que por conta de alguns milímetros não esteve ferida. Foram segundos de muita tensão, uma olhando a outra afim de esganar, destruir. Pandora só observava espantada, totalmente boquiaberta, com medo de intervir e alguém sair ferido. Os olhos de Bethe marejaram, e quando as lágrimas escorreram por suas bochechas rosadas, a faca caiu sobre os pés das duas.

– Eu sinto muito – disse Evanora ao ser envolvida nos braços de Bethe e Pandora. Que a acolheram e a confortou diante das lágrimas que ela havia guardado.

CELADONN - O Rubí de ÉthasOnde histórias criam vida. Descubra agora