Effy

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     Prosper está batendo a cabeça contra a parede quando irrompo em seu quarto. Sua testa está vermelha, mas ele não parece sentir dor alguma - na verdade, não parece sentir absolutamente nada. Deixo a bandeja de comida em cima da cama e corro até ele, para fazê-lo parar antes que se machuque de verdade. Coloco minha mão entre sua testa e a parede no exato instante em que sua cabeça está prestes a atingi-la mais uma vez e sinto sua pele muito quente contra meus dedos. Prosper está com febre.

     - Pare com isso - com a outra mão, puxo seu ombro e o viro para olhar para mim. - Você vai se machucar.

     Ele cerra os punhos e fecha os olhos com força. Agora parece sentir dor.

     - Ela não para - diz entre dentes, os lábios pálidos e tremendo. - Eco não quer parar de falar...

     Seguro sua mão entre as minhas e tento acalmá-lo. É a única coisa que posso fazer.

     - O que ela diz?

     Os olhos de Prosper se abrem devagar e fitam os meus como se estivessem pedindo socorro. Ele arqueja e sacode a cabeça, se recusando a me responder. Vê-lo dessa maneira me deixa tão aflita que sinto vontade de abrir sua cabeça eu mesma e arrancar o que quer que o esteja atormentando lá dentro. Eu já a odeio, seja o que ou quem for. Prosper a chama de Eco, mas parece um nome amigável demais para essa criatura tão perversa. Seus tios a chamam de Yonmirei e se referem a essa coisa como se fosse a salvação de Nobre Vida, mas eu não entendo por quê - e eles não se incomodam em me explicar.

     - Você precisa comer alguma coisa... - seguro o braço de Prosper, tentando conduzi-lo à mesa do quarto.

     Ele puxa o braço de volta bruscamente, como se meu toque lhe causasse repulsa.

     - Prosper...

     - Saia daqui! - ele grita muito alto. E então vira a cabeça e dá duas pancadas contra a parede. - Effy, vá... - sua voz agora é só um fio de som - por favor, nos deixe sozinhos...

     Arregalo os olhos, assustada. Prosper já me atacou uma vez, quando "a coisa" assumiu o controle do corpo dele, mas eu não senti medo naquela ocasião. Eu sabia que não era ele e não me senti machucada ou ofendida. Agora, no entanto, está começando a ficar perturbador, como se ele e a coisa estivessem se transformando em um só aos poucos - e esse alguém é completamente estranho e aparentemente perigoso para mim.

     Afasto-me de Prosper e olho de relance para a comida em sua cama. Ele só come e bebe quando sua tia o visita e isso já faz quase três dias. Don e Beth saíram para reunir o que eles chamaram de "reforços para proteger Prosper" e me deixaram encarregada de protegê-lo até retornarem. Com a ajuda de meus protegidos Naya e Pekin, que têm sido de surpreendente ajuda, tenho tentado cuidar dele, mas está longe de ser fácil. Eu queria que ele simplesmente voltasse a ser o garoto doce e corajoso que conheço, sem toda essa história de Eco e Yonmirei. Sinto falta do verdadeiro Prosper.

     - Como ele está? - Naya me aborda no corredor, assim que deixo o quarto. Ela tem tentado bancar a adulta desde que o choque inicial de estar em outra dimensão passou.

     Esfrego a testa, tentando pensar numa resposta otimista.

     - Ele não quer comer - digo.

     Naya assente, como se já esperasse isso.

     - Encontrei isso aqui - ela me estende um livro velho de capa marrom e desgastada. - Fala sobre promecias.

     Encaro a capa e ergo uma sobrancelha.

     - Quer dizer profecias?

     Naya checa o título outra vez.

     - É, profecias - dá de ombros. - Acha que pode ajudar?

     Pego o livro e abro com cuidado, sentindo um cheiro forte que me lembra o mofo e poeira da Terra, embora não existam aqui com as mesmas características de lá. As páginas são manchadas e eu me pego com dificuldades para ler os caracteres de Nobre Vida. Faz muito tempo que não leio ou ouço nada na língua antiga, então meu cérebro demora para compreender as letras, palavras e frases.

     - Como sabe que é um livro sobre profecias? - pergunto a Naya. - Eu mal consigo ler duas linhas...

     Ela se aproxima e aponta para a palavra no alto da primeira página.

     - Essa foi a única palavra que eu consegui ler - diz. - Parece com os livros que papai tinha guardado no escritório dele.

     Arregalo os olhos.

     - E você aprendeu a ler?

     - Minha mãe me ensinou, mas eu não lembro de quase nada. Pekin também não sabe, eu já perguntei.

     Franzo o cenho e fixo meus olhos no texto antigo.

     - Parece tratar de algo que aconteceu antes da Guerra...

     - Será que Prosper consegue ler?

     Sacudo a cabeça.

     - Prosper mal consegue se manter são, Naya. É claro que ele não vai ler - fecho o livro. - Além disso, ele passou praticamente a vida toda na Terra sem saber quem realmente é e de onde veio. Em que vai nos ajudar?

     Naya cruza os braços, fazendo aquele bico que sempre faz quando eu a contrario.

     - Valeu a tentativa - dou dois tapinhas em seu braço e volto a andar pelo corredor.

     - Você o subestima demais, sabia? - Naya diz às minhas costas.

     Paro, suspiro e olho para ela.

     - E o que isso significa, hein?

     Naya se aproxima de mim pisando duro e me encara com os olhos crispados. Eu já vi esse olhar antes - um olhar de superioridade característico da família dela de Iluminados perfeitinhos.

     - Prosper é especial - ela diz. - Não pode sentir?

     - Especial... - repito. - Por que acha isso?

     - Admita, Effy, você também pode sentir a energia dele, não pode? 

     - É claro, ele é um Iluminado.

     - Não só um Iluminado - Naya sacode a cabeça. - Ele é mais forte do que todos nós juntos.

     Eu sei. Eu soube muito bem quem Prosper era desde o primeiro segundo em que senti sua presença. A força dele não pode ser descrita com simples palavras humanas. Mas aonde Naya quer chegar com isso?

     - Aqui - devolvo o livro para ela -, vá decifrar o que está escrito aqui e pare de me aborrecer...

     - A gente precisa fazer ele melhorar - Naya segura meu pulso, falando mais sério do que jamais vi ela falar.

     Seu tom de voz e a expressão em seu rosto me fazem hesitar e pela primeira vez em todo o tempo em que passei cuidando dela e de Pekin, Naya me subjuga. O corpo dela exala autoridade, apesar da pouca idade. Não somos apenas guardiã e protegida, mas serva e senhora, Iluminada e Cinzenta. Como fomos criadas para ser - a raça dela manda e a minha obedece sem contradizer. Naya não percebe nada disso, mas eu sim. E sei que esse tipo de coisa vai se tornar frequente uma vez que ela crescer e se tornar adulta - e o mesmo vale para Pekin. Já que Raoul e Lail morreram, minha lealdade e servidão é para com seus herdeiros até o fim dos meus dias.

     - Sim - eu respondo, tentando não transparecer o quanto estou abalada. - Vamos fazê-lo melhorar assim que Beth e Don retornarem com a ajuda que foram buscar.

     Naya sacode a cabeça com mais veemência.

     - A chave está nesse livro - ela o estende para mim -, precisa ler e descobrir o que fazer para salvar Prosper. Eu sinto que precisamos ajudá-lo de qualquer jeito, Effy. Faça isso.

     Pego o livro, sentindo um nó se contorcer em minha garganta.

     Meus dias de servidão estão de volta.






A Ruína de Ricky Prosper (VOLUME 2)Onde histórias criam vida. Descubra agora