Capítulo 6 - Portões e Porta Retratos

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Via uma porta, ao longe. Via sua moldura, via a maçaneta e a fechadura, mas não via nada além disso. Era somente a porta, o portal das memórias, o portões do purgatório  de seu ser.

O clarão lhe ofuscava a vista.

— Arwen, ainda não botou o lixo para fora? — A voz feminina gritava, vinda direto do quinto dos infernos. Tudo soava tão abafado, tão destorcido...

— Já vou, manhe! — Respondia uma voz mais fina, mais jovem,  berrando da sala.

A porta se fechava atrás daquele corpo cansado, destruído. A mochila surrada sobre os ombros, a envergadura do corpo miúdo curvava-se para baixo.

— Mãe, cheguei. — Avisou, como sempre, em vão. Ninguém, em uma casa barulhenta como aquela, realmente se ouvia. Todos berravam, mas ainda sim eram surdos.

Gritos, choro. A recém nascida, no colo da jovem mãe, virava em aguaceiro. Suspiro, dores de cabeça.

A mãe, da cozinha, continuava a gritar.

— Agora, Arwen Patrícia Hensler. — O nome completo. Como mãe, seu divino poder concedido por criaturas celestes era a clarividência. Sabia o melhor modo de aborrecer cada um dos seis filhos.

A garota bufou, desfez o corpo mole e se levantou de onde amontoou-se na sala. Cruzou xucra diante do irmão mais velho, ao qual sempre recebia com ao menos um abraço e um beijo. Desprezo.

Continuou a caminhada, um momento sequer olhou para algum lugar que não fosse os próprios pés. 

— Ben! Sai! — A irmã mais nova tentava desgrudar o caçula da família de sua perna, onde o garoto se agarrara como que com a própria vida. Brincadeiras de criança.

Gritos, berros sem sentido. Uma dor agoniante.

Gritos, choro. Agora um infinito de angustia lhe dilacerava o desejo de retornar. Era tarde. Relógios só andam para frente, Gus.

...

Pegara-se gritando com o além, descarregando toda a sua dor e culpa nos deuses míticos. Fora primeiro Zeus, depois Atena, depois Hera. Depois passara para Jeová, Alá e o Buda.

Fome, miséria, a terrível pobreza da alma. Pobre de dinheiro, de amigos, de família. Pobre de espírito, da plenitude dos deuses e dos homens.

Abraçado a mochila de lona à militar — seu único bem, seu único consolo —, Gus só conseguia fazer sons animalescos. Palavras jamais iriam transmitir o que estava sentindo por dentro.

Amélia estava parada no acostamento, a espera de algum entendimento à motorista. Gus, porém, não parecia muito afim de dar-lhe respostas.

— Vai me contar logo o que aconteceu ou vamos perder o resto do dia aqui? — Curta e grossa. Não propositalmente, mas quem disse que Jéssica Price realmente pensa em algo?

Nada. Não que os gritos cessassem, apenas que eles ainda não queriam dizer absolutamente nada. Éramos homens das cavernas entre as dunas de areia, meu amigo.

A garota sentou-se no banco que ficava entre os dois, para talvez, tentar consola-lo. Gus soluçava, estava com a face avermelhada de tanto gritar e chorar. Pequenas idiotices do mundinho de Hensler.

A mão no ombro talvez fosse consolo, talvez piedade. Em uma situação dessas é difícil destingir. Em sua vida como um todo era difícil destingir. Em muitos só via pena nos olhares de caridade, era só. "Ajudem os necessitados que chegarão às escadas do paraíso!", dizia o padre da igreja em que passara na frente uma vez em Euseb. Gustav não encontrava consolo algum para si, senão abraçando em vão o pedaço de tecido esverdeado.

Dizem que o dinheiro não traz felicidade, mas a falta dele com certeza traz tristeza. Junto as terríveis perdas sempre está a dos pequenos e suados trocados. Gus de fato nunca teve muito dinheiro para saber como era ter uma grande perda, mas sempre estivera economizando para quem sabe um dia, ter ao menos alguma garantia na vida e isso já era seu pequeno tesouro. Dois anos de trabalho, uma noite de bebedeira. Pequenas e grandes coisas se vão rápido como a areia que antes estava naquelas dunas e agora voava sem um rumo ao vento.

Sem lizes e lotus não existiam Taureanas. Não existiam tetos, pães, nem amanhãs.

Jéssica não fez mais do que parte da paisagem durante esse tempo até ali. Gus era o grande rugido de fúria, Jess, ironicamente se tornara o silêncio.

Se lembrava exatamente de todos cálculos e anotações que havia feito a respeito do modo do dinheiro ser gasto. Taureana tem a terceira maior produção de carne bovina de Veran. Carne barata, além do arroz e feijão. Precisava ganhar peso ou iria sumir. Tinham uma taxa pequena de desemprego, lera certa vez em um jornal que um moço engravatado jogara onde ele estava sentado na praça da cidade.

Agora o saquinho de camurça era tudo o que restara, vazio, como o dono.

Depois de um tempo — infinito tempo aquele —, os gritos pararam. Agora só lágrimas saiam do pequeno casulo vazio, do qual todas as borboletas coloridas fugiram. Gus, que sempre fora um garoto de muitas borboletas interiores, agora fora abandonado, traído por suas companheiras aladas. Só podia soluçar, se solução não havia.

Jess — a morada não de borboletas, mas de mariposas estranhas — sentiu-se igualmente abalada. Motivo? Bem, ela não sabia. Só havia a certeza de que nada mais ali era certo.

— Foi aquela cadela, não foi? — Estava paciente, ao menos uma vez na curta e tumultuada vida. — Sei que já deve saber, mas gente como ela não presta. Nunca. Gente interesseira... Inútil... Hm, não que eu preste, não estou querendo dizer...

Cala a boca! — Vespas grosseiras e zangadas tomaram-no como abrigo. Gus era a última das moradas a qual elas deveriam recorrer, mas seu momento chegara. — Por... Por favor. Mantenha essa boca fechada um momento, sim? — Aí sua voz já tinha quase retornado a calma habitual - totalmente era impossível.

A cabeça rodou, para lá e para cá. Se sentiu culpado por agir daquele modo. Se sentiu culpado da coisa toda, da ruiva, da família, do dinheiro e dos gritos inúteis.

Do lado de fora o mundo era puro barulho, rodas no asfalto a todo instante, urubus rondando as carcaças mortas de animais atropelados sem hesite. Ali dentro da redoma de vidro e metal de Jéssica Price, estavam seguros de tudo, do mundo todo.

— Olha... Desculpa. Você não... Você não tem culpa de nada. Eu que sou o culpado, faço tudo errado, afinal. — A voz falhou, os olhos fugiram. Deu um sorriso forçado para mostrar que tudo estava sob controle. Não estava, e Jess sabia disso. — Aquela... Garota, ela me roubou.

O bom filho a casa retorna, não? Silêncio era o primeiro filho da recente união dos dois.

...

"E um assalto ao Banco Central em Merci acaba de acontecer. Durante duas explosões e várias trocas de tiros entre os meliantes e os guardas do cofre que protegia o local de onde o dinheiro estava, houveram vinte mortes"

— Mãe! Escuta só. Os Nonsense vão tocar perto daqui no sábado eu... Eu posso ir? — A filha do meio falava com entusiasmo, ao lado, a mais velha a olhava sorrindo, a combinação das duas. 

— É. Eu vou, o Mike disse que tudo bem se a...

Tudo estava abafado. As vozes saiam de algum buraco nas paredes de seu cérebro. Era horrível.

A pequena televisão de tubo era o único lugar para onde a sua atenção estava direcionada. Na estreita junção de luzes e sons apareciam fotos, suspeitos e mortos.

"Augustus Hensler", soou alheia a qualquer sentimento expresso pelos familiares. Noticiários frios aqueles.

Ouviu-se um grito que calou a mesa do almoço. A mãe que chorava. Os irmãos que espantados encaravam a frieza com a qual foram avisados. 

Era como entrar em um cemitério reviver tudo aquilo sem seu consentimento.  

Na cristaleira ao canto cozinha, logo abaixo do relógio que lhe contava os minutos para o juízo final — tique a taque —, a foto da família. No porta retratos os dois sorridentes, como unha e carne, outrora foram.

Agora era tarde. Passava das duas.







AméliaOnde histórias criam vida. Descubra agora