A prisioneira do tempo

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Clara estava boquiaberta, seus olhos demonstravam terror e confusão, mas ela permaneceu em silêncio enquanto Marta continuava sua história.

-Após minha família ser morta, os assassinos fugiram. Vizinhos de meu pai trazidos pelo barulho dos tiros chegaram e me viram atordoada, mas viva, sentada no chão com minha filha morta no colo. Arrancaram a menina dos meus braços enquanto eu gritava como louca. - Não podem tirá-la de mim, eu dizia. Não aceitava que estivesse morta. Fui levada ao Sanatório. Tiveram que me amarrar  na cama do hospital, eu estava completamente descontrolada. Muitos meses se passaram, mas minha razão não voltava. Eu passava os dias chamando minha filha, pedindo para me trazerem a menina. Eu chamava por ela dia e noite. Não dormia, nem comia. Davam-me remédios muito fortes, mas nada me fazia dormir ou parar de chamar, até que uma enfermeira teve uma ideia. Ela me trouxe uma boneca do tamanho de minha filha e me deu.

 Disse: -Aqui está sua filha. Ela está dormindo. Imediatamente eu me calei e abracei a boneca, não podia perceber que era apenas uma boneca, eu tinha enlouquecido. Passei os meses seguintes agarrada àquela boneca sentada em minha cela. Uma noite comecei a ter muita febre e delirar. Via então em minha frente o marido que eu matara, ele tentava me estrangular e me olhava cheio de ódio, queria vingança. Via meu pai, via minha filha coberta de sangue que chorava e chamava por mim estendendo as mãozinhas. Eu estava com tifo, a febre não cedeu, a doença se agravou e numa manhã de dezembro eu fui achada morta em minha cela abraçada à boneca.

Enfermeiros entraram e levaram meu corpo para o necrotério do hospital, mas eu os vi fazer isso, andei ao lado de meu corpo, perguntando o que estava acontecendo. Eles não podiam me ver. Fui ao meu enterro, fui colocada no cemitério atrás da igreja. Quando o enterro acabou eu ainda estava lá, ninguém me via, eu não sabia para onde ir. Minha mente ainda não tinha voltado, não conseguia entender que tinha morrido. Comecei a vagar sem rumo pela cidade a procura de minha filha, não me lembrava do que tinha acontecido com ela. Sentia muito desespero e muito ódio, mas também não saberia explicar esses sentimentos. Vaguei por muitos lugares durante anos a fio, por estradas, por pequenas aldeias. Não saberia dizer exatamente quanto tempo fiquei assim. Eu estava presa no tempo. Estava presa na Terra, mas  estava morta. De tanto perambular, depois de muitas décadas talvez, cheguei à sua cidade. Procurei imediatamente por uma menina que se parecesse com a minha, era assim em todo lugar que eu passava. Minha memória não tinha voltado completamente, e o rancor pelas pessoas tinha crescido muito. De cada menina que eu me aproximava eu tentava me tornar amiga, queria que cada menina que encontrava se tornasse minha filha. Quem atrapalhasse essa minha ideia louca sofria as consequências. Foi assim com o padre de sua cidade, ele queria me afastar de você, de sua casa, por isso eu fiz o motorista que dirigia distraído pela estrada não ver o padre e ele morreu atropelado. Também sentia muito ciúme por isso não tolerava que as meninas que eu escolhia tivessem outros amigos, nem que eles fossem apenas cães. Eu os matava.

Nessa parte da história Clara já estava tão aflita que se levantou e gritou: - Você é louca! Ainda está louca! Não acredito em nada do que você diz. Você inventou tudo isso. Vá embora ou vou chamar a polícia e não fique andando atrás de mim, ouviu bem? Ela gritava tão alto que hóspedes do hotel começaram a entrar no restaurante para ver o que estava acontecendo. 

Então Marta se levantou e disse: - Você precisa me ajudar! - Eu quero paz! - Por favor me ajude!

Os olhos da mulher , ou do fantasma ou seja lá o que for que ela fosse, estavam cheios d'água. Ela estava chorando. Clara não queria ouvir mais nada, estava histérica. De repente aquela mulher estranha, muito alta, vestida com roupas esquisitas desapareceu no ar. Tudo isso foi demais para Clara, ela desmaiou.

Quando acordou ela estava em seu quarto, havia um médico em pé do seu lado, medindo sua pulsação e o casal de idosos donos do hotel estava ali também, olhando pra ela, muito preocupados. Perguntaram como ela estava se sentindo. Ela se sentou na cama, disse que estava melhor e começou a contar tudo que tinha acontecido. O médico receitou calmantes, disse que ela  descansasse e que ele voltaria no outro dia para ver como ela estava. Depois que o médico saiu, o casal ficou com Clara por um longo tempo. Ouviram cada detalhe do que ela dizia com muita atenção, estavam preocupados. Quando ela acabou de falar. A mulher disse: - Clara, acreditamos em você. Conhecemos essa história, foi há muito tempo atrás. É uma história antiga, mas verdadeira. Muitas pessoas contavam que viram uma mulher como essa que você viu perambulando pelas estradas e que ela desaparecia de repente. É uma triste história. Clara acho que sei o que ela queria de você.

- O que?- perguntou Clara.

Ela quer orações. Quer se libertar, quer ter paz. Ela nunca conseguiu se comunicar com ninguém antes, como fez com você, contar sua história. Ela quer descansar em paz. 

As lágrimas desciam pelo rosto de Clara. Ela estava ainda bastante abalada. O casal então propôs que fossem juntos no dia seguinte até a pequena igreja onde ficava o cemitério e pedissem ao padre para rezar quantas missas fossem necessárias. Assim fizeram. O padre se comprometeu a fazer missas pela alma de Marta por um ano inteiro. Também foi pedido às pessoas que moravam na cidade que fizessem preces, cada um do modo que quisesse, segundo a crença que tivesse, pela alma de Marta. Formou-se então uma verdadeira corrente de orações pela cidade. 

Marta nunca mais foi vista. Clara continuou trabalhando como guia turística para os donos do hotel, ficou morando na cidade e visitando o pai nos finais de semana como tinha prometido. Ela nunca mais esqueceu da experiência que teve. Marta pode enfim descansar em paz.


A amigaOnde histórias criam vida. Descubra agora