Ainda embarcado, fiz amizade com a tripulação — que consistia principalmente de militares portugueses e alguns artistas, botânicos e alquimistas, de variadas nacionalidades — e rezei algumas missas, a pedido do capitão Fontes, que simpatizara comigo. O homem, português de corpo robusto, tinha uma perna mecânica de cobre e aço no lado direito, que eu só descobri, pois fez questão de me mostrar, enquanto tagarelava sobre as últimas descobertas alquímicas, que eram condenadas pelos iluministas e a Igreja.
Por Fontes descobri que a região sul da Colônia Brasil era a principal fonte de extração de carvão mineral, um bem que começava a ganhar valor, graças à revolução industrial por que passava a Europa, incitada pela Inglaterra. Mas a vencedora da Guerra dos Sete anos andava abalada com a Revolução Americana no ano que se passara, e eu me questionava se o Império Britânico continuaria criando máquinas a todo vapor.
— Não duvide padre Santianno, de que antes do fim de minha vida, estarei pilotando uma belonave que singrará os céus desta colônia! — declarara Fontes, sonhador, ao que eu só podia concordar com um aceno e um sorriso complacente.
Se fosse para os homens voarem, Deus haveria de ter-lhes dotado com asas, no início dos tempos. Abstive-me de comentários, pois o homem trocava de assunto mais rápido do que eu piscava. Agora falava sobre a ilha da Capitania de Santa Catarina, situada estrategicamente no meio do caminho entre o Rio de Janeiro e a Colônia de Sacramento.
— Aqui é uma parada obrigatória para todos que vão para a região platina, seu padre, o último porto apropriado para reparos e abastecimento. O litoral é de uma beleza estonteante, não acha?
— Sim, estou deveras encantado — concordei, pois há muito a paisagem capturara a minha atenção.
A ilha que se revelava à frente, e a parte do continente, possuía elevações suaves, cobertas de um verde vivo semeado por flores multicoloridas, que também preenchiam seus vales; decerto aquela era uma terra abundante, regada por muitas fontes e riachos. Ao longo da costa da Capitania de Santa Catarina, passamos por muitas enseadas e ilhotas, com margens arenosas e quase inacessíveis, devido à quantidade de rochas esculpidas pelo mar bravio. Mar este onde eu jurava ter visto barbatanas e cabeças humanas, por entre os ocasionais golfinhos que nos acompanhavam.
O vislumbre daquela terra, ao findar de pouco mais de um mês, era abençoado por um magnífico por do sol, tingindo de rubro as montanhas verdejantes que se estendiam por meu novo lar. O navio singrou a enseada, manobrando por entre as ilhotas fortificadas e seguindo até a baia centro oeste da ilha de Santa Catarina, ancorando a um cais de palafitas.
Ainda recordo vividamente aquele dia, no ano de 1777 de Nosso Senhor, com meus recém-completados vinte e sete anos, quando cheguei à vila de Nossa Senhora do Desterro.
— Bem vindo à ilha da magia, padre! — saudara-me um conterrâneo, quando desci na praia, acompanhado de meu fiel jumento.
— Ilha da magia? — arqueei as sobrancelhas, para o miliciano em um colete verde. — Temos seres mágicos aqui?
— Ora, pois, as bruxas, padre! Fugiram da inquisição, voando para a Ilha dos Açores, e pegaram carona nas caravelas que vieram povoar nossa vila, no século passado — explicou o senhor, gesticulando enquanto me guiava para praça central — Tome cuidado ao andar de noite, elas vivem pregando peças nos pescadores, e — aproximou-se, dizendo em tom de segredo — já correram com alguns padres que viviam por aqui.
— Agradeço o aviso, meu bom senhor, que o Santíssimo o abençoe — e com um sorriso aplacador, segui meu caminho.
A simpática vila possuía cerca de cem casinhas de madeira, em contraste com o edifício de dois pavimentos da Casa do Governador e a Igreja, localizados nas esquinas. Era para a primeira que eu me dirigia, munido de minha carta de recomendação, esperando a aprovação para começar a lecionar para os pequeninos, brancos e negrinhos, que corriam atarefados pelas ruas. Não viviam na ilha mais do que mil portugueses, com o dobro do número de escravos africanos, e os poucos índios carijós que ainda circulavam pela região. O continente, com as vilas de São Francisco e Laguna, era mais habitado.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Desterro
Short StoryNinguém sabia ao certo como aquela praga do inferno se espalhara. Porventura fosse uma maldição, agora, ficava a questão, quem a lançara? Quer fossem os índios, os escravos ou as bruxas, tudo o que importava ao jovem padre era completar...