PARTE I

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Ninguém sabia ao certo como aquela praga do inferno se espalhara. Talvez, fora trazida pela frota espanhola, que invadiu a Ilha de Santa Catarina no começo do ano 1777 de Nosso Senhor. Quiçá fosse uma maldição dos índios, escravizados nos séculos passados pelos portugueses para servir ao povo civilizado, dos negros trazidos da África para substituí-los, ou das bruxas vindas dos Açores. Porventura, era um castigo dos céus para os homens que tentaram se equiparar ao nosso Deus todo poderoso: os seres disformes que infestavam a colônia brasileira eram um aviso de que o fim dos tempos, revelado no livro do apóstolo João, estava próximo.

Agora, no fim iminente de minha vida, eu, padre Samuel Santianno, transcrevo tudo o que sei a respeito desta desgraça, com a esperança de que, se a colônia superá-la e se reerguer das cinzas, os homens civilizados aprendam a não interferir na natureza e nos planos do criador para nossa ínfima existência na terra.

Tudo começou quando fui mandado em tenra idade para onde se recolhiam o quinto nos infernos.

Não, em realidade, minhas provações começaram quando vim ao mundo, em treze de janeiro de 1750, gorducho, mas prematuro, em uma noite enluarada.

— Il settimo ragazzo! — me contavam que anunciou a minha tia, enquanto eu era banhado pela luz prateada.

Sou o sétimo filho em uma grande família italiana, que compartilhava apenas uma casa. Durante minha infância, diziam que eu era amaldiçoado pelos números, mas sempre acreditei ser apenas um sobrevivente do mundo.

Até que os números começaram a fazer sentido. Cresci numa pequena vila próxima a Florença, onde meus parentes eram totalmente alheios aos conflitos que se desenrolavam por todo o mundo civilizado. Menos meu pai, Lorenzo, que trabalhava no jornal da cidade, encarregado de uma prensa gráfica. A máquina, criada há trezentos anos por Gutenberg, imprimia os folhetins que meus irmãos e eu, desde cedo, gritávamos as manchetes pelas ruas, em busca do pão de cada dia.

Nem todo mundo era alfabetizado, e muitos habitantes da cidade governada pelos Medici preferiam apenas ouvir o título das notícias. Já eu, curioso, logo acabei aprendendo a decifrar aquelas letrinhas, que preenchiam as páginas em minhas mãozinhas. Quão surpreso fiquei quando, no dia do meu décimo aniversário, li a manchete na primeira página.

Sono passati dieci anni dalla firma del Trattato di Madrid! anunciei aos quatro ventos, enquanto andava pelas ruas do mercado, entre as barracas de comidas, invenções mecânicas e especiarias alquímicas.

O tal tratado de Madri definia os limites das colônias sul-americanas, e fora firmado entre os reis João V de Portugal e Fernando VI da Espanha, mas não parecia ser muito útil para sustentar a paz. Com o passar dos anos e dos jornais em minhas mãos, fui percebendo o agravamento das contendas entre aqueles reinos e o povo, influenciados pelos filósofos iluministas.

Desde que eu me entendia por gente, havia guerra declarada entre a Espanha e a França de Luís XV, contra a Inglaterra, Portugal, Prússia e outros reinos de ambos os lados que eu só conhecia de nome. O cessar da Guerra dos Sete Anos marcou não só o fim de uma fase na Europa, como da minha vida, quando me vi sendo embarcado em 1763 num navio português, aos cuidados do padre Miguel, amigo de infância de minha madre, Fátima.

Tendo como lastro as promessas de uma vida melhor na colônia portuguesa, passei longos e enjoativos meses a bordo da nau que singrou o Atlântico, e quase virei um dos defuntos negros despejados em alto mar, já que contrai uma pestilência, provavelmente comum aos marinheiros, que me alucinou durante uma semana de lua cheia. Sobrevivi, mas não recordo a minha chegada, nem como fui parar na fazenda que se tornou minha morada, no interior das Minas Gerais brasileiras.

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