Um tiro era parte do treinamento no forte, cujos milicianos eram os próprios habitantes, pescadores e agricultores, e, por isto, meus alunos apenas se entreolharam, continuando a escrever com o giz em seus pequenos quadros. Mas ao ribombar do segundo, terceiro e quarto canhão seguidos, os meninos ficaram apavorados. Nem pediram permissão, largando as lousas de suas mãos, saíram correndo e gritando para fora da capela:
— É guerra! É guerra!
Inspirei profundamente e fiz uma prece para que as crianças estivessem erradas, enquanto as seguia, querendo saber o que sucedera. Afinal, se estivéssemos mesmo em guerra, os baluartes da defesa portuguesa deveriam criar uma barreira de fogo intransponível, com o inimigo sendo crivado de tiros de canhão vindos dos dois lados.
Havia comoção na orla da prainha de Necessidades. Juntando-me à multidão, voltei os olhos para o noroeste, onde ficava a ilha da Fortaleza de Ratones, e senti meu sangue gelar em pleno verão.
O clima no litoral da Capitania de Santa Catarina estava tão abafado quanto o próprio inferno na terra, o que confirmei que o era, quando meus olhos pousaram em uma dezena de embarcações ardentes. Navegavam ao prazer da correnteza e suas velas brancas com cruzes rubras eram consumidas em labaredas alaranjadas. O fogo se alastrava, e, mesmo de longe, vi os corpos dos espanhóis debatendo-se antes de se lançarem ao mar.
— Mio Dio! — abismado, fiz o sinal da cruz e rezei pela alma daqueles pobres coitados.
O povo se encontrava em transe ao fitar o incêndio, imaginando que o inimigo espanhol já havia sido derrotado. A sequência de explosões dos paióis de pólvora nas embarcações provocou alguns urros de alegria.
Apenas quatro tiros de canhão haviam provocado tal calamidade? A dúvida me deixara sem reação e permaneci por uma pequena eternidade a observar a catástrofe. Ao cessar dos estouros, que zumbiam em meus ouvidos, o som das ondas acompanhou as exclamações excitadas ou desnorteadas à minha volta.
A maré estava subindo rapidamente naquela hora e, antes que todos notassem, corpos encalharam na beira da praia, como se impelidos para a margem por uma força oculta. Alguns cidadãos corajosos se aproximaram para verificá-los. Mas eu comecei a recuar, antes que pedissem para ir dar-lhes a extrema unção.
Sempre fui fraco para aguentar mortos, e já alcançava a escadinha da capela, quando um grito lancinante soou por entre o povaréu. Com um arrepio subindo pela minha espinha, apressei o passo para alcançar o sino, e coloquei minha cabeça para fora da abertura na parede, procurando de onde surgira o grito.
Arregalei meus olhos e senti-me travar, ao ver meu pequeno aluno sem um braço e a gritar. O espanhol meio carbonizado, que devia ter o atacado, estava sendo espancado, impiedosamente, por alguns pescadores com remos. Minha boca abriu em indignação para com o homem, mas outros atraíram minha atenção.
Os corpos se arrastavam pela praia, emergindo da água, levantando-se com dificuldade, como desmortos saídos de suas tumbas, com suas roupas detonadas chamuscadas e alguns membros empretecidos. Mesmo perturbado, notei que a maioria deles possuía partes mecânicas, eram elas que os impeliram contra os pescadores. Erguiam os braços, com mandíbulas escancarando-se e liberando um grunhido retumbante, enquanto caminhavam tropegamente, lançando-se como lobos do inferno nos cordeiros de nosso Deus.
Alguns homens tombaram, rolando pela areia tentando se livrar das unhas e dentes que em sua pele encravaram. Outros, da multidão que se dispersava, avançavam nos atacantes, e um português atirou um arpão de baleia no peito de um espanhol, com tamanha força que este caiu há alguns metros, com um baque na areia. Suguei o ar, torcendo para que estivesse morto, mas então o desmorto tornou a levantar.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Desterro
Короткий рассказNinguém sabia ao certo como aquela praga do inferno se espalhara. Porventura fosse uma maldição, agora, ficava a questão, quem a lançara? Quer fossem os índios, os escravos ou as bruxas, tudo o que importava ao jovem padre era completar...