Nós começamos trancados em nossos cofres e permanecemos
Mas quando você está indo todas as cores desbotam. (Colors - Amos Lee)Eu não sei se já nasci desse jeito ou se fui ficando assim por causa do meu amigo pintor, mas quando eu olho para uma coisa eu me ligo logo é na cor.
Pessoa, casa, livro, é sempre igual: primeiro eu fico olhando para a cor do olho, da porta, da capa; só depois começo a ver o jeito que o resto tem.Um dia, Zayn me disse que eu era um garoto com alma de artista, e me deu um álbum com trabalhos de aquarela, tinta a óleo e pastel que ele tinha feito. Mind of mine. Foi como ele chamou. Disse que tinha arrumado os trabalhos no álbum para eu entender melhor esse negócio de cor.
Nas primeiras páginas do tinha cor. Quer dizer, no princípio nem cor tinha: era só branco e preto; depois começavam as cores: amarelo, azul, vermelho, e depois essas três cores iam se misturando pra formar uma porção nuns desenhos que às vezes eu gostava e outras vezes não.
Zayn me disse que quando mais a gente prestava atenção numa cor, mais coisa saí de dentro dela. Eu fiquei olhando pra cara dele sem entender nada. Não entendi mesmo aquela história de tanta coisa ir saindo de dentro de uma cor.
Mas hoje teve uma hora que eu não estava afim de olhar pra cara de ninguém. Então abri o álbum que ele tinha me dado. Só pra poder ficar olhando para cada cor e mais nada. Olhei, olhei, toquei. E de repente eu entendi direitinho o que ele tinha me falado! Me deu uma vontade de ir lá em cima e dizer:
"Entendi o que você me disse aquele dia! Estou entendendo demais esse preto; te juro que me deu um estalo e eu estou entendendo o jeito que esse amarelo pegou."Só que não deu para falar com o meu amigo pintor; ele morreu. Hoje está fazendo três dias que ele morreu.
Zayn mora, quer dizer, morava, no apartamento aqui em cima. Eu ia lá jogar videogame com ele, a gente conversava, e ele tinha um relógio de parede que batia de meia e meia hora. O meu pai e minha mãe reclamavam "mas que batidas mais chatas e enjoadas" e a minha irmã me perguntava "será que o teu amigo nunca vai esquecer de dar corda no relógio, não?"
Mas cada um é de um jeito, não é? E eu gostava demais de ouvir o relógio batendo. De noite ainda mais.
Não era só porque batia bonito.
Nem era só porque eu acho legal viver ouvindo que horas são.
Era porque, cada vez que ele batia, eu pensava: o Zayn está lá.Pra mim, ouvir o relógio batendo era como ouvir meu Zayn andando. Ou falando. Ou rindo. Será que dá para entender o que eu quero dizer? Porque ele era um cara quieto demais, tinha mania de apenas fazer coisa que não faz barulho: fumar, pensar, pintar; se não fosse o relógio batendo, puxa vida! Ia até parecer que ele nem vivia lá.
Mas não era isso que eu queria contar. Eu queria era dizer que na terça-feira, quando cheguei da escola, eu fiquei sabendo que ele tinha morrido. Fui lá. Não aguentei olhar para ele morto: virei o rosto para e dei de cara com um quadro que ele tinha pintado: um homem amarelo, que ele nomeou de She (Um dia ele me disse que ele estava assim todo amarelo porque ele tinha acordado contente, e eu - que ainda não entendia nada de cor - fiquei achando que era coisa de pintor.)
Não deu para ficar lá em cima; voltei correndo pro meu quarto.
De repente, comecei a me sentir todo escuro por dentro. Tão escuro, que não dava para enxergar nada dentro de mim.
Mas nessa hora o relógio começou a bater. Um monte. Porque era meio-dia. E se alguém perguntar que cor tinha a batida eu respondo rápido, amarela!!É que eu fiquei como o Zayn: fico achando que amarelo é uma cor contente. E era tão bom ouvir aquele meio-dia! Cada batida que o relógio ia dando dava a impressão que todo mundo tinha se enganado e que o Zayn continuava vivinho lá em cima.
E aí, tinha o aniversário da Jade, minha prima. Mas eu não fui.
Tinha o jogo de futebol da minha escola. Mas eu não fui.
Tinha um livro que eu estava gostando. Mas eu nem quis mais ler.
Só para ficar aqui. Escutando o relógio bater.
E ele bateu. No princípio, amarelo forte. Mas depois o amarelo ficou mais fraco; cada vez mais fraco. O relógio estava perdendo a corda e era por isso que a batida ficava com aquele amarelo cada vez mais desanimado, cada vez mais esbranquiçado.Hoje ficou tudo branco: o relógio não bateu mais.
Que vontade! Que vontade de ir lá e dar corda a ele.
A porta está trancada.
— Quem é que ficou com a chave?
— O tal Harry.
— Mas a corda do relógio acabou.
— Ele levou a chave.
— Mas o relógio...
— Ele disse que volta aqui.
— Mas e o relógio?
De noite, quando fui dormir, fiquei esperando, esperando.
Nada. Só aquele branco todo. Eu nunca pensei que o silêncio fosse assim tão branco. E aí, sim, eu vi mesmo que o Zayn tinha morrido e que branco doía mais que preto; amarelo, nem se fala! Doía mais que qualquer cor.
VOCÊ ESTÁ LENDO
MEU AMIGO PINTOR ✴ ZIAM MAYNE (concluida)
FanfictionLiam tem um amigo pintor, com quem aprendeu a deslumbradora revelação do mundo das cores, das formas, e até o primeiro sentido de amar. Zayn, o amigo pintor, a presença do jovem amigo cheio de ternura e entusiasmo, entra nessa aventura de descobert...