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O céu daquela tarde estava da cor de uma televisão sintonizada num canal fora do ar, as nuvens cinza estavam carregadas. Com certeza iria chover.

Mas o céu pouco me importava, enquanto eu olhava a paisagem além do vidro da porta automática. A linha onze estava movimentada naquele horário. Eu me ajeitei no meu lugar junto a porta, um lugar que havia adotado para mim. Enquanto o trem freava na estação, observei as pessoas do lado de fora. Algumas caminhando apressadas, outras se preparando para entrar no vagão. Havia aquelas que não estavam sozinhas. Suas companhias eram de amigos em grande parte, mas havia os casais. Esses eram a minoria. As exceções.

Um casal entrou no vagão onde eu estava, sorrindo um para o outro. Eles não pareciam se importar com os outros passageiros olhando de relance para eles, alguns revirando os olhos, outros tinham olhares resignados. Para o casal, no vagão existe apenas eles. Olhei para a plataforma de embarque do lado oposto onde eu estava. Mais gente ia se aglomerando na ponta, esticando os pescoços, tentando ver se o trem estava chegando. Outras pessoas se concentravam em seus celulares. Se um piano estivesse tocando uma música de tom inocente, eu poderia achar beleza nessa cena do cotidiano.

Na vida, tudo depende da trilha sonora certa.

O trem parte mais uma vez, fazendo eu me segurar na barra de aço.

Penso na garota de olhos azuis. Para falar a verdade, ela não saiu da minha cabeça. Nos dias seguintes desde de a primeira vez que a vi, minha mente divagava automaticamente para a garota. Toda vez que as portas automáticas do vagão se abriam, eu esperava que ela entrasse. Fazia uma semana e meia que eu não a via. Uma vez, enquanto perambulava na plataforma de embarque, eu achava que tinha visto ela. Mas não era. Acho que eu queria que essa pessoa fosse a garota.

Mas estou começando a esquecê-la, um detalhe de cada vez.

Está frio. Esfrego meus braços com minhas mãos, e espirro. Ótimo. Tudo o que eu queria era ficar doente.

Coço meu nariz, e volto a olhar o lado de fora do trem. O céu está igual ao meu humor.

(...)

No momento em que o trem faz outra parada numa estação, estou contando quantos prédios cabem na silhueta do meu polegar. Quatro é a resposta. O trem parte, e eu nem percebo. Não estou indo para nenhum lugar em específico hoje. Apenas quero viajar de trem. Sinto que deveria ter trazido um livro hoje, junto com um guarda chuva. O livro me distrairia. Canso-me de contar os prédios, e apoio as costas contra a porta. O vagão está silencioso. Não há conversas ou cochichos. Apenas o som do metal dos trilhos é existente aqui. Mas escuto algo a mais. Um choro contido, vindo da porta automática a minha frente. Levanto os olhos e não acredito em minha visão.

A garota dos olhos azuis. Ela está aqui.

Mesmo estando na frente dela, ela não me nota. Um medo que eu ignorava me soca no estômago. Será que ela não me vê mais?

Agora minhas pernas se movem sozinhas. Elas se aproximam da garota. Ordeno que elas parem, mas minhas pernas têm vida própria. Elas param no exato ponto onde estive na última vez que vi a garota. Percebo agora que sou um pouco mais alto que ela. Meus olhos querem encontrar o olhar da garota, mas eles hesitam.

É a garota de olhos azuis que está chorando.

Não quero ver ela assim. Não quero que ela se sinta assim. Mas não sei o que fazer. Fico ali, estático como uma estátua. Apenas observo o chão a nossa frente, encabulado. Levanto o olhar novamente, e mesmo antes de nossos olhares se cruzarem, sinto que ela me encara. Quando acontece, penso na ponte. Quero que ela se forme novamente, como naquele dia. Parece que estou esperando esse momento faz incontáveis eras.

Estou aquiOnde histórias criam vida. Descubra agora