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O balançar suave do vagão de trem quase me faz pegar no sono.

 A luz do sol poente, por mais que esteja fraca, consegue me manter acordado. Encostado na porta, ajeito meu ombro de maneira que ele não me incomode mais. Vejo em volta, percebendo que a quantidade de passageiros daquele vagão diminuiu substancialmente. Olho para o painel acima de mim. Estou a seis estações do destino final. Imagino se alguém vai descer na próxima estação, e torço para que ninguém utilize a porta aonde estou apoiado.

Estendo o pulso, verificando as horas no relógio de pulso. Quatro e quarenta e sete da tarde. Deveria descer na próxima estação e tomar o trem de volta. Meus pais podem ficar preocupados. Encosto a cabeça no vidro da porta, e vejo os acentos de plástico, quase todos desocupados agora. Na ponta mais distante, está August, professor de sociologia. Com o jornal do dia em mãos, ele desbrava as palavras cruzadas com total atenção. Esse hábito de August existe desde a primeira vez que o notei, quando comecei a viajar na linha onze. A linha anterior fora a três. Depois de dois anos viajando naquela linha, eu enjoei de ver os mesmos rostos todos os dias. Então, linha onze aqui estamos.

Me viro e apoio minhas costas contra a porta. Dou um suspiro alto, mas ninguém se incomoda. Eles nunca se incomodam. Levanto os olhos e tenho um susto.

Uma garota está olhando direto para mim.

Me pergunto se a garota está vendo a paisagem feita de concreto que se estende no vidro atrás de mim. Mas não. Percebo que ela não está apenas notando minha presença. Ela me vê.

Quando estamos viajando num transporte público, você não vê realmente as pessoas. No trem, ao entrarmos no vagão, temos consciência das outras pessoas ao nosso redor. Por vezes, notamos a presença de passageiros que nos chamam a atenção. Mas raramente vemos essas pessoas. Se você tem sua atenção totalmente voltada para uma pessoa, você vê a pessoa. E nesse momento dentro do vagão onde você está, existe apenas a pessoa e quem enxerga a pessoa.

E essa garota está fazendo isso. Ela me vê, me enxerga.

Eu vejo ela.

Nesse mesmo momento em que estabelecemos uma conexão, onde nossos olhares formam uma ponte, mas ela desvia o olhar e eu faço o mesmo. A ponte se desfaz. Eu noto que estou segurando a respiração, como se aquilo conservasse o momento que havíamos tido. Eu me sinto eufórico e amedrontado ao mesmo tempo.

Nunca haviam me notado antes. Nunca haviam me visto antes. Eu já procurei sinais de minha presença nos olhares das outras pessoas antes, e nunca encontrei vestígios de que alguém tivesse me visto. Eu sou invisível neste vagão, neste trem. Eu sou invisível em qualquer lugar. Sempre foi assim, desde os meus sete anos. As pessoas não me enxergam. Em casa, nem mesmo meus pais me enxergam, tenho que fazer barulhos para que eles saibam que estou em casa. São como cegos, que necessitam de estímulos para saber aonde estou.

Não se trata de uma metáfora. Não é algo que está somente na minha cabeça. Isso é um fato. Eu sou invisível.

Decido me arriscar a dar outra olhada na garota. Levanto os olhos. Isso não basta para mim. Quero me aproximar dela. Não quero falar nada para ela, quero apenas saber como ela é. A garota esconde os cabelos loiros curtos dentro de uma touca. Eu pulo a área dos olhos, não quero correr o risco de uma nova troca de olhares. Os lábios parecem um pouco ressecados, culpa do sol de hoje. A pele é clara, mas percebo que está um pouco suja. Noto que ela carrega um skateboard ao lado do corpo. Deve ter ido à pista de skate que existe à duas estações de trem atrás. Ela usa um moletom cinza bastante usado, e a calça preta está tão surrada quanto seus tênis.

Estou aquiOnde histórias criam vida. Descubra agora