Primeira Noite - Novos Passageiros

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As luzes da cidade tornavam a visão de Augusto um turvo de pontos brilhantes. Enquanto olhava pela janela do carro, tentava não tirar o olho da pista e as mãos firmes do volante. O pé, ele sabia, estava afundado no acelerador e tudo o que ele fazia era passar a marcha, dando aquele jeitinho na embreagem, evitando que o carro morresse. Sem voz, o contador de giros urrava que a aceleração estava mais alta que o normal.

Rapidamente, uma a uma, os pontos saíam do campo de visão do taxista, em meio à madrugada horrorosa na Avenida Presidente Vargas vazia e seus monumentais prédios próximos à Igreja da Candelária – passaria por trás dela e viraria à esquerda, rumo à zona portuária. Achava que todas aquelas obras para os grandes eventos foram um grande e inútil gasto de dinheiro. Percebeu, mais uma vez, o quanto sentia falta do Elevado da Perimetral margeando o Rio de Janeiro. Entrou no túnel, assistindo aos pingos de luz que desaparecerem de seu campo de visão em velocidade extraordinária.

Sua vontade era de fazer o ponteiro alcançar uma quilometragem de três dígitos significativos e, para completar, pegar o pequeno cantil que tinha no porta-luvas, cheio de bebida, para infringir mais leis ao mesmo tempo. Porém, o que o casal que transportava no banco de trás pensaria dele? Pareciam um pouco "altos" e alegres, com algumas risadas que transbordavam malícia. Mais notável ainda, era a elegância contida em cada gesto da mulher. Seus movimentos com uma das mãos supunham o quão fina deveria ser segurando um Dry Martini – que achava ser a bebida típica de seu habitat natural.

- Moço. – indagou a mulher do banco de trás – Qual é o teu nome?

- Augusto. – respondeu o taxista.

- Augusto de quê?

Com a pouca paciência que sabia que tinha, Augusto suspirou e respondeu brevemente.

- Seixas – disse ele, com canto da boca – Augusto Seixas.

- Que nem o cantor?! Você deve se sentir orgulhoso! Toca Raul aí, vai!

A empolgação na voz da mulher incomodou Augusto, preocupado com outras coisas e ainda trabalhando na madrugada de sábado. Nada mais que um pouco do pesadelo que acreditava viver. Tempo depois, perto da subida da ponte, a mulher pegou no sono e parou de fazer perguntas – a direção suave do taxista colaborou para seu adormecer. O rádio permaneceu desligado todo o tempo.

- Ela é bem agitada – comentou o homem do banco de trás – Costuma ser assim o tempo todo, até sem bebida.

- Não te preocupa, não! – respondeu Augusto – Tô acostumado com isso já.

Depois de um breve silêncio, após um prenúncio de um pedido de desculpas não concluído, o homem do banco de trás tornou a falar um pouco para quebrar o gelo.

- Você tem algum cartão? – perguntou ele.

- Ah, sim. – respondeu Augusto – Um instante.

Rapidamente, o taxista mexeu no porta-objetos abaixo do aparelho de tantos formatos de disco que nem ele mesmo sabia dizer o que era aquilo – bastava chamar de "rádio player". Encontrou menos de uma dezena de cartões com a marca da cooperativa, seu nome e telefone, e estendeu um deles ao homem.

- Acho que precisarei dos seus serviços ainda essa semana... – disse o homem – Espero ter sorte de tê-lo disponível.

- Sabe pra quando?

- Não faço ideia...

Com o falatório, a garota se remexeu no colo do rapaz e disse um "toca Raul" baixinho, quase inaudível. A vontade de Augusto era dizer "sem Raul para senhorita". Sem demora e em velocidade constante, o carro passou pela Ilha de Mocanguê, revelando as primeiras favelas e todo aparato naval que ali ficava. A técnica ao volante, que permitia manter a garota dormindo, era basicamente um ninar móvel, lembrando os tempos em que sua filha era pequena e não conseguia dormir em certas noites. Aquela saudade é uma maldita facada que sempre afunda em seu peito.

Pelo retrovisor, o taxista notou a expressão desgastada do homem.

- Imagino que deve fazer algo bem estressante – disse Augusto.

- Por quê? – indagou o homem.

- Sua cara não consegue esconder isso, mesmo com a bebida.

- Você tem um bom faro para perceber coisas.

Quando o homem disse isso, o seu sorriso amedrontou Augusto, que quase empalideceu – se realmente o fez, a luz interna apagada colaborou para esconder a expressão.

Pedágio. Um "boa noite", dinheiro e troco. Seguiram adiante.

- As vezes, perceber demais é ruim. – continuou o homem.

- Perceber pouco também. – retrucou Augusto, em tom desanimado.

- Ânimo, homem! Somos todos vizinhos da cidade maravilhosa! Não há porque ficar triste.

As palavras do homem quase tocaram dentro de si, se uma barreira de melancolia não impedisse a passagem. Queria o cantil do porta-luvas, quase não se importando com o que pensaria. Lembrou-se do revólver que estava escondido, junto ao cantil, e desistiu de pegar qualquer coisa. O carro desceu pela saída que levava ao centro.

O táxi passou em frente aos dois terminais de ônibus e, posteriormente, a estação das barcas, de frente para a larga e majestosa Avenida Ernani do Amaral Peixoto. As pistas vazias eram um chamariz para cometer infrações. Retornou apenas na altura do bairro São Domingos, em direção ao centro, para entrar na rua indicada pelo cliente: a Rua da Conceição. Augusto sentia asco daquela rua – sentia-se pequeno e preso. As lâmpadas acesas dos postes, enquanto a cidade estava apagada, eram pingos de luz mais incômodos que as luzes de túneis.

A direção tranquila de Seixas se mostrava como sua marca registrada, eficiente e causadora de sintomas de sonolência, exceto no próprio.

Dois quarteirões após a prefeitura velha – um prédio antigo, daqueles de longa entrada arborizada e faixada detalhada – que agora a abrigava a Secretaria de Fazenda do município, chegaram ao destino. Com o carro parado na calçada da direita, o homem no banco de trás acordou a moça adormecida e, então, os dois saíram do carro.

- Boa noite, seu Augusto. – disse o homem – A propósito, sou Ricardo. Será bom fazer negócios com você.

Um sorriso felino brotou dos lábios de Ricardo.

- Boa noite! – respondeu Augusto – Eu acredito que sim.

O casal caminhou em direção a um prédio simples, em meio a outros prédios apagados. Para Augusto, os prédios comerciais apagados exalavam um cheiro de morte, de solidão, ao redor do fio de vida dessas habitações prediais. A melancolia novamente o tomou.

Chorou, escorado no painel do carro, morrendo de saudade e sabendo que sem eles não pode ser. Ecoou em sua mente um clássico, de Tom e Gal, e essa dor ele não mais queria ter.

Luzes da CidadeWhere stories live. Discover now