3 - EU LEMBRO PERFEITAMENTE DAQUELE DIA

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1995

Esmeralda

Era de fato, um castelo. Pelo menos para mim, que vivia em um casebre na favela e só tinha visto algo desse porte na televisão. Não que eu não fosse grata pelo meu pequeno e antigo lar - afinal era a unica coisa que eu tinha conseguido depois dos meus esforços - mas saber que deixaria de viver em meio às baratas e esgoto a céu aberto, me deixava feliz, bem feliz e aliviada!

A minha vida sempre foi difícil. Perdi os meus pais quando tinha acabado de completar dezoito anos e precisei me mudar para a cidade grande, para poder tentar a sorte de conseguir um emprego digno. Sai da minha terrinha com apenas cem reais no bolso e, durante uma semana, consegui dormir em um abrigo para moradores de rua. Arvoredo para mim era uma novidade, já que eu, a bobinha que veio da roça, nunca tinha estado em um lugar tão grande e tão assustador. Eu observava os movimentos das ruas lá da minha janela e ficava abismada com a quantidade de pessoas e de carros trafegando. Olhava para os prédios e ficava até tonta com a altura deles. Será que eu conseguiria emprego em algum deles? Para mim, até trabalhar como faxineira estava de bom tamanho. Meu desejo inicial era conseguir uma graninha para não morrer de fome.

Eu lembro perfeitamente daquele dia... Estava ensolarado e no meu bolso, restavam apenas dez reais que eu usaria para pagar o café da manhã em uma padaria que ficava no centro da cidade. O que sobrasse, usaria para comprar algum salgado para que pudesse me alimentar antes de dormir. Era meu último dinheiro e o desespero se tornara o meu pior pesadelo. Se eu não conseguisse um trabalho, estaria sem saídas. 

Sai do abrigo com uma pequena mochila. A minha rasteirinha já estava bastante gasta, coitada... só possuía ela. Passei batom, arrumei meu cabelo e parti para mais uma jornada em busca de um emprego. Não tinha como não notar os olhares dos homens nas ruas direcionados à mim, ou melhor, para a minha bunda. Por ser uma negra de traços fortes, muitos me julgavam como garota de programa, outros, achavam que eu iria roubar algo deles; muitas mulheres atravessavam a rua quando percebiam que eu estava me aproximando delas. É... além de ser tratada com tamanho machismo tinha que aguentar o racismo em cima de mim. Eu não queria rouba-las, apenas queria saber se conheciam algum lugar que estivesse contratando mulheres jovens.

Sabe, o maior ouro que meus pais me deram foi a educação. Sempre fui dedicada e nunca faltava uma aula sequer na escola publica do meu povoado. Meu sonho era ser professora de português, mas tive que abdicar do meu ultimo ano de ensino médio para cuidar dos meus pais que estavam doentes. Naquela época, a seca castigava o local onde eu morava e infelizmente Deus os levou, não resistiram ao infernal sal da terra. Eu, desde criança, graças ao valor que meus pais deixaram pra mim - valor moral, digo - aprendi que nunca iria aceitar o julgamento das pessoas em cima de mim baseado na cor da minha pele. Sou preta e com orgulho! Sempre carregava comigo o pensamento de que nenhum homem ou mulher me destrataria. Seria de igual para igual e quem não soubesse lidar com o meu maravilhoso tom de pele, não teria valor nenhum para mim. 

Cruzei a avenida principal do centro de Arvoredo e ouvi alguns assobios vindos de um grupo de homens que estavam tapando alguns buracos no asfalto, deveriam ser os trabalhadores da prefeitura, não dei a mínima e segui meu percusso. Cheguei na padaria, comprei um pão com manteiga e um copo de café, comi apressadamente e após terminar, agradeci à Deus pela oportunidade de me alimentar. Ia me levantando da mesa quando olho para um papel que estava abaixo do pacote de guardanapos. Curiosamente desdobrei ele e li o que estava escrito:

EMPREGADAS DOMÉSTICAS (URGENTE)

O casal Otaviano e Beatriz Napoleão estão contratando arrumadeiras. A seleção está ocorrendo em sua nova residência, localizada na Rua do Alto Nº14. Paga-se bem.

Era um anúncio!! Rapidamente fiquei agitada... Será que Deus estava me dando uma chance? Será que eu estava no momento certo e na hora certa por ter achado aquele papel? Estava contente. E, sorrindo, sai correndo da padaria. Eu iria conseguir aquele emprego de arrumadeira, eu sentia que iria ser contratada!! Lá no fundo, enquanto corria feito louca pelas ruas, sentia, que aquele emprego estava destinado a mim. 

  Ƹ̴Ӂ̴Ʒ  

- Mamãe? Quanto tempo vai levar isso? Preciso fazer uns telefonemas e os rapazes querem que eu me encontre com eles no restaurante. - dizia Renato, filho do meio do casal Napoleão.

- Não chegou ninguém até agora. Pedi pra Suzana me avisar e a inútil não me deu respostas ainda. Será que deveríamos cancelar toda esta merda? Eu sabia, Renato... Eu sabia que não deveríamos ter confiado em um escritoriozinho merreca de publicidade para espalharem o anúncio das empregadas. Se... Se aquela cadela da Aritana não tivesse pedido demissão, tudo estaria nos conformes. Odeio quando a laia tenta aparecer. - falava a matriarca da família.

- Mamãe, se ninguém chegou é porque não ficaram interessadas com a oferta. Os empregados que possuímos aqui conseguem organizar tudo. Para que ter mais de quinze pessoas trabalhando nessa casa? Quer gastar mais dinheiro com esses pobres? Vai ficar tendo dor de cabeça à toa por causa deles? Por favor, a senhora já foi mais inteligente.

Não era novidade que ostentação era um ponto alto daquela família. Desde que os negócios começaram a dar certo, há décadas atrás, os Napoleão sentiam a necessidade de ter o seu próprio reino, com muitos bobos da corte... nesse caso, seus empregados.

- Renato, querido... Isso é jeito de falar com a sua mãe? - falou caminhando lentamente em direção ao rapaz - Chamar a sua querida mamãe de burra é um dos seus argumentos? Amor... Quanto mais tivermos pessoas sob o nosso controle, melhor. Não morrerei por pagar a mais um mísero salário pra uma qualquer... Não ficarei pobre por dar uma pequena oportunidade para a laia poder jantar ovo com farinha no final do expediente... Essa casa é muito maior do que a outra e precisamos de mais pessoas. Você não deveria nem reclamar sobre esse assunto, já que nunca se preocupou com nada do que acontece dentro da própria casa. - Beatriz começou a passar a mão no rosto do filho - Renato, você deveria ser grato por ter uma mãe tão boa como eu. 

O rapaz a observava com cautela, já que ele tinha medo de deixa-la nervosa. Renato sabia do que sua mãe era capaz quando a afrontavam.

- Olha só, por exemplo, eu dou muitas oportunidades para as nossas empregadas de cor. Se não fosse por mim, elas estariam aonde? E você? Se não fosse por elas, quem limparia seus lençóis de camas todos vomitados após as suas noitadas? Pense bem, amor... Uma a mais não fará diferença para você e nem pra mim. Não fale mais besteiras como essa. Estamos entendidos? 

E como todo bom filho de Beatriz, Renato balança a cabeça concordando com tudo. 

- Está bem, mamãe. Desculpe-me! Vou aguardar a senhora lá em baixo, mas ainda não sei porquê você precisa de mim apenas para dizer sim ou não à alguém. 

- Porque, querido, o seu papaizinho saiu cedo não sei pra onde. A inútil da sua irmã continua dormindo e o seu outro irmão está no escritório resolvendo coisas que era você quem deveria estar fazendo. Então, evite falar abobrinhas, não encha o saco da sua mãezinha e aguarde-me. Após isso, você poderá torrar à vontade o dinheiro que a sua família tem. Amor de mãe, tenta conseguir ficar pelo menos cinco minutos não sendo um peso morto. Capisce? - disse  Beatriz afastando-se do filho. 

ATEMPORAL (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora