A história do Fernando.

157 14 6
                                    

    Era um menino com um jeito rebelde. Precisava só ser conquistado. Em um primeiro momento queria Passar a impressão de que não se importava com nada e ninguém. Tudo aparência.   Um garoto simpático e amigo.
    No dia que eu conheci ele, uma professora logo me avisou. Vai pra 704? Se prepara, vai conhecer o Fernando. Ele gosta de xingar os professores. Confesso que fiquei assustada, pensei em não ir. Mas, caro leitor, professor não pode escolher, precisa ir com ou sem vontade.
      A primeira vista ele parecia inofensivo. E eu demostrava uma segurança de serenidade. Fernando não fazia nenhuma tarefa, ficava o tempo todo com braços cruzados olhando para o quadro. Também não atrapalhava a aula.
        Aos poucos passou a copiar as tarefas do quadro e a participar da aula. Impressionante  era que eu não reconhecia aquele menino dos comentários que os outros professores faziam dele. Dizendo que  gritava, xingava, era malcriado. Enfim, não parecia ser o menino tranquilo que eu conhecia.
     Um dia uma professora estava apavorada na sala dos professores, ele  havia ameaçado, usado palavras grosseiras e muitos palavrões. Solicitou que eu interferisse. Achei melhor pedir ao professor de geografia que fosse. Professor muito querido e dono de um carro imaginário. Mas, fique tranquilo meu leitor impaciente, essa é uma outra história. Um dia eu te conto, prometo.
       O professor de geografia foi até lá e conseguiu acalmar o garoto que me olhava de longe e estava fora de si.
       Um dia ele aparecia e o outro ele faltava. Assim, o tempo passava e eu estava acostumada a isso. Diferente dos outros alunos estava sempre muito bem vestido, e quando era frio seu casaco era o mais caro no pátio. Bordado com uma letra gigantesca de uma marca famosa muito usada nas comunidades.
       Lembro quando contou que perdeu o teste pois precisava ficar com sua mãe doente. Não acreditei nessa história e fui perguntar a diretora, que confirmou o fato. A mãe dele tinha, de fato, uma doença muito grave. O garoto cuidava sim de sua mãe.
      Fiquei muito envergonhada por não acreditar no que havia me contado. Só que escola e assim mesmo. Não se pode acreditar em tudo que os alunos contam. É preciso conferir todas as informações.
      Aos poucos, seu comportamento foi mudando, já não tirava a mochila das costas por nada no mundo e um dia ele estava na sala de aula ensinando outro menino a "arte"de enrolar um baseado. Nesse dia olhei para ele com ar de reprovação e ele pediu desculpas, mesmo não achando que sua atitude estivesse errada. Pra ele não estava. Mas, pelo respeito que sentia por mim guardou o material demonstrativo em sua mochila. Fique calmo meu leitor curioso, ele usava um folha de caderno para ensinar seu colega.
      Seu afastamento das aulas era notório, já fazia um ano que eu era sua professora e percebi seu comportamento completamente mudado. Conversei com ele, quando me disse  que pensava em largar a escola. Estava fascinado com a vida que o tráfico estava lhe  proporcionando. Perguntei sobre sua mãe. Hesitou e disse que estava muito ocupada com seu padrasto novo e não se importava muito com ele. Seria ciúmes?
       Já não entrava mais nas aulas. Preferia ficar  andando pelo pátio, sempre com a mochila nas costas, o corte da moda e a sobrancelha falhada propositalmente. Era a cada dia mais respeitado. Nas redes sociais já não fazia questão de disfarçar sua nova atividade. Falei com seu melhor amigo para que interferisse. Ele disse que já havia tentado. Não conseguiu.
      Certo dia uma menina que quase nunca frequentava a aula resolveu aparecer. Achei estranho, mas preferia acreditar que depois de muito tempo a garota tinha percebido que estudar era a saída para a mudança. Inocente que eu fui nesse dia. Ela entrou na aula pois, queria arrumar tumulto com uma outra que estava grávida na ocasião.
     Ficaram em lados opostos da sala uma xingando a outra e o Fernando lá no meio da confusão. Fiquei desesperada, você não tem ideia das coisas que passaram na minha cabeça. Só imaginava aqueles jornais baratos noticiando o fato.
"PROFESSORA OMISSA, GAROTA GRÁVIDA É ESPANCADA DENTRO DA SALA DE AULA."
Esse letreiro corria pela minha mente, foi quando rapidamente tomei uma decisão. Vou tirar da sala a menina grávida. Ilusão a minha, pois, quando coloquei a menina para  fora ainda, discutindo com a outra não havia sequer um inspetor no pátio. Cadê aquele grandão?? Pensei, a outra está lá dentro, é só não deixar a menina sair. Certo? Pois bem, errada eu estava. Outras garotas, de outras turmas corriam em direção a menina, com o celular, todas haviam sido avisadas da briga em andamento e queriam bater na coitada da grávida. Pensei, droga e gritei:- Corre, vamos para a sala da diretora. Chegamos a salvo lá.
Voltei o mais rápido que podia para a turma. Quando abri a porta de ferro, aquela confusão. Cadeiras voando para todos os lados. Uma menina chorava colocando as mãos sobre o braço. A menina mais comportada da sala, provavelmente havia quebrado o braço. Puxei a menina pelo braço, não o quebrado, o outro, óbvio. Não sou tão tonta leitor debochado.
      Corri novamente com a garota chorando para a sala da diretora. Tentei explicar rapidamente, porém, nem eu sabia o que havia acontecido ao certo. Voltei para a sala novamente. Perguntei quem havia feito aquilo. Ele levantou a mão e disse, foi eu professora. Mas foi sem querer. Pretendia jogar naquela maluca que começou toda a briga.
  Coloquei a mão na testa e tive vontade de chorar. Se a diretora descobrisse ele seria expulso, já tinha aprontado mil e uma confusões.  Ele pediu que ninguém contasse. Disse que tinha pedido a Carolina pra não contar. Falei pra ele que se a diretora me perguntasse eu não poderia mentir.
     Conforme o combinado Carolina não entregou Fernando para a diretora. Tempos mais tarde descobri que ele havia feito sérias ameaças.  A menina quebrou o braço em dois lugares por conta das cadeiras voadoras. A mãe da garota ficou furiosa e foi várias vezes reclamar comigo. Ameaçou me processar. Pedi desculpas, mas no final das contas disse que ela deveria fazer o que achava certo. Não chegou até hoje nenhuma intimação sobre o caso.
       Com o passar do tempo, a menina recuperou-se, no entanto, mudou de turma. A grávida teve seu bebê. A menina que causou todo o tumulto foi aprovada com dependência em Português. A vida seguiu. Fernando rendeu- se a exclusividade do tráfico. Ele saiu da escola. Desapareceu.
        Perdi o contato, todos perderam. O afastamento é inevitável. O carinho que sinto por ele incondicional. O crime me venceu, o tráfico foi mais sedutor do que uma professora que não podia oferecer todo o glamour que ele esperava da vida. Nunca mais o vi. Nas redes sociais parece feliz. Até quando? Quantos Fernandos eu vou perder para o tráfico? E acabar virando foto em infinitas camisas de luto? Prefiro acreditar que muitos outros podem ser ajudados.

Histórias que ouvi na escola.Onde histórias criam vida. Descubra agora