PRÓLOGO

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O anjo chegou empolgado no último degrau da escada, nas mãos tinha harpa e, no peito, versos que fez pela manhã e o chamou de "O Poema da Criação". Agora, estava ansioso para recitá-lo ao Pai, que estava ocupado às margens da Fonte da Vida.

"O que está fazendo, Pai?" ele perguntou, alegre.

"Estava aguardando por você, tenho algo que quero te mostrar" Deus
respondeu.

Antes de o anjo começar a falar as dúvidas que lhe vieram à mente, o
Criador imergiu um dedo na fonte
e fez leves movimentos
circulares, até ondas se formarem, em seguida, puxou repentinamente a mão, trazendo para fora um fino turbilhão cristalino, como
se fosse extensão de seu dedo. A água começou então a tomar forma: pernas, braços, cabeça e, finalmente... asas.

"Era uma estátua que queria me mostrar?" ele perguntou, admirado com a figura
imóvel terminando de se materializar diante de seus olhos.

"Não é uma estátua" Deus disse, rindo.

"Não? Então o que é?"

"É um anjo, como você..." Deus afirmou.

Por um tempo, ele refletiu, tentando entender o que aquilo significava, e com isso, apertava a harpa com força, sem
perceber. Em sua alma, de onde só brotava alegria desde o dia em que fora criado até
então, cresceu um sentimento tão desconhecido quanto incômodo.

"Por que precisa de outro
anjo, Pai?" perguntou, num único fôlego.

"Porque preciso de você, deste aqui e de muitos outros mais. Olhe a sua
volta..." Deus abriu os braços e virou a cabeça de um lado para o outro, instigando o filho
a imitá-lo. "O paraíso é tão grande, não se sente solitário? Tudo ficará melhor, cheio de vida, por todos os lados, suas canções serão mais bonitas quando forem cantadas por um coral de querubins"

O anjo pensou sobre aquelas palavras e tentou imaginar em sua mente o mundo novo que seu pai falou. Tentou tirar o pensamento de que, pela primeira vez em sua existência, não concordava do Altíssimo. Não entendia porque tudo não poderia continuar como estava, por todo o sempre – apenas criador e a criatura,
apenas Pai e filho caminhando entre as árvores e as estrelas, sob o som das doces melodias de adoração por ele compostas.

Mas a presença daquela estátua feita de água, que agora parecia
observar o anjo, trazia consigo a certeza de que as coisas nunca mais seriam
as mesmas.

"Não serei mais o
seu preferido?" resumiu em seis palavras tudo o que sentia dentro do peito.

"Amarei todas as minhas criaturas da mesma forma, infinito é o meu amor e não irei medir ele, dividindo mais para um ou mais para outro" depois que Deus disse essas palavras, o anjo nada respondeu, permanecendo de cabeça baixa. Após alguns
instantes, o Altíssimo voltou a quebrar o silêncio: "Não se preocupe, posso
garantir que sempre terá papel fundamental em meus planos. E não falo isso somente para te agradar, pois bem sabe que minha palavra
é a expressão da verdade. Além disso... estou certo de que irá gostar de liderar os anjos"

"Eu vou liderar
eles?" animou-se o anjo, com a alegria subitamente
retornando ao espírito. "Quantos deles?"

"Muitos! Serão tantos que se perderão de vista e
darão a volta ao mundo quando enfileirados!" o Criador respondeu, enchendo-se de orgulho ao
perceber o interesse transbordando no seu filho.

"E o Senhor irá fazer todos
eles hoje?" o anjo agora estava eufórico.

"Não, hoje não" Deus deu uma gargalhada, sacudindo as estrelas
no firmamento. "Quando
estiver seco por completo" o Altíssimo apertou o ombro da figura moldada com a água da fonte —, irei dar o sopro da vida. Assim
como fiz contigo e como farei com os outros. Mas apenas um a cada dia, não mais do que isso. Pois, para
que fiquem perfeitas, as coisas devem ser feitas com calma. Entende?"

O anjo balançou a cabeça em afirmação, satisfeito pela sensação que o incomodara havia pouco ter ido embora – esperava não senti-la nunca mais, já não via aquela "estátua d'água" como uma ameaça e, além disso, a sensação
de ter milhares de seguidores o alegrava por inteiro. Então, perguntou ao Altíssimo:

"Eu vou ensinar eles a compor louvores e a cantar?"

"Sim. E também... a treinar cada um para guerras" Deus falou, desviando o olhar,
agora um pouco melancólico, para o
horizonte.

"Iremos guerrear?"o anjo arregalou os olhos, desconcertado. Entendia o significado da palavra, mesmo sem nunca tê-la
ouvido antes, mas não compreendia como esse tipo de evento poderia vir a ocorrer. "Contra quem?"

"Existem forças que se alastraram pelo universo enquanto eu dormia"

"O que desejam?"

"Querem o que lhes foi tirado quando acordei. Desejam destruir a ordem e voltar para o
caos que havia no mundo antes que tudo fosse criado" respondeu.

"Tu é o criador de tudo, Pai, onipotente, onipresente e onisciente" o anjo sorriu com confiança. "Não conheço essas forças que o Senhor falou, mas eu sei que estão loucos caso planejem qualquer tipo de coisa contra você, meu Pai amado. Infinito é o seu poder, com apenas um pensamento poderia destruir cada um..." enquanto falava, o anjo refletia a respeito das próprias palavras, e a confiança cedia lugar à dúvida.

Por que precisavam de
guerras que matariam muitos anjos sendo que Deus poderia fazer
todos desaparecerem num piscar de olhos?

"Com apenas uma palavra, poderia destruir cada um, agora mesmo, onde quer que estejam... não é?"

"Sim, sou aquele que tudo pode e tudo sabe, aquele que sempre existiu e sempre existirá. Sou aquele
que é. Porém, precisamos fazer isso juntos, para que o futuro prossiga de forma correta, entende?" o Altíssimo perguntou.

O jovem coçou o queixo, olhou para o alto e pensou por algum tempo. Na
falta de melhor argumento,
acabou ficando com a resposta mais simples, direta e sincera possível.

"Não, não entendo"

Deus sorriu, sem nada dizer de imediato. Caminhou até ele e o encarou com alegria e tristeza, como se estivesse
vendo todo o destino do universo
refletido no azul de seus olhos, acariciou o rosto de seu
primeiro anjo, tão belo quanto a estrela que brilha na alva e traz a luz para o mundo.

"Um dia você irá entender o que estou falando, Lúcifer. Um dia você irá entender tudo"

LÚCIFEROnde histórias criam vida. Descubra agora