CAPÍTULO 05

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ONISCIÊNCIA.

Belial simplesmente não dissera nada, então ambos retomaram a sua caminhada, Belial cabisbaixo, e Satan massageando a nuca com a mão direito enquanto gesticulava com a esquerda, vez ou outra abrindo a boca e balbuciando frases desconexas, como se um acalorado debate estivesse sendo tratado dentro da sua mente, e Belial continuava quieto, isso era o melhor a se fazer até Satan terminar a sua batalha consigo mesmo e resolvesse abrir a boca para algo claro em sua mente. Satan então muda de forma, adquirindo um aspecto de um mendigo decrépito com uma corcunda protuberante, fiapos de cabelos brancos caiam pela sua testa e uma camada leitosa de catarata cobrindo os olhos, vestes simples em um tom marrom sujo, pés descalços e em sua mão, um cajado. Passou horas assim, deslocando-se lentamente com a ajuda do seu cajado e às vezes quando não estava dando conta, precisava de Belial para não cair no chão.

E quando se cansou, se tornou uma mulher de beleza inebriante, curvas voluptuosas e um olhar que faria desejos ardentes até no mais fiel entre os corações dos homens, assim, vagou por longo período, acariciando e umedecendo os lábios com luxúria e a língua repleta de saliva e promessas veladas, tentou seduzir Belial, mas ele estava longe e de costas, provável que estava pensativo também. Em seguida, transmutou-se num garoto de dezessete anos, magro, com semblante vazio e triste, pele pálida, um nariz pequeno, cabelos compridos, vestindo um terno preto luxuoso. Segundos se passaram e Satan já não era um garoto, estava na casa dos trinta, cabelos loiros, olhos verdes, barba por fazer, uma jaqueta de couro e jeans. Depois se tornou uma bibliotecária sorridente. Um empresário cansado. Um pintor fracassado. Um cantor famoso com calças justas e um sorriso de tirar o fôlego. Uma comissária de bordo. Uma modelo. Um ator. Se tornou tantas pessoas depois, até não conseguir pensar em mais nada antes de ir de joelhos ao chão, voltando a seu objetivo principal, voltar a ser Lúcifer, Estrela-da-Manhã.

Esfregou as mãos macias no seu rosto, sentindo-o novamente, mordeu os lábios delicadamente, passou a mão pelos cabelos diversas vezes, tocou seu corpo angelical, tão belo quanto a estrela que brilha na alva e traz luz para o mundo, se levantou do chão e ergueu suas asas, sentiu-se livre. Mas a saudade passou em instantes e então ele deu uma risada, que misturava ódio, rancor, inveja e uma miríade de outros sentimentos vis. Mas aos poucos, o riso foi ganhando contornos irônicos, e quando se converteu em um pouco mais que uma leve contração da bochecha, toda maldade havia se dissipado, sobrando tão somente a expressão daqueles que após muito tempo de negação, agem com humildade e reconhecem a derrota.

Sentou-se em seu trono novamente. Jamais admitiria isso, talvez nem a ele mesmo, mas naquele momento, Satan sentia-se estranhamente solitário e ansiava por alguém, mesmo que só estivesse só proximo, para compartilhar as agruras que lhe consumiam a alma.

Estava tão distraído que nem percebera que Belial já não estava mais lá. Então percebeu que precisava fazer uma breve visita ao mundo dos humanos. Precisava vê-lo.

O sol se pôs no Inferno se pôs e o Anjo Caído voou.

Agora estava em pé, sobre a gigantesca Torre Eiffel, o Anjo Caído observava a cidade, à aproximação do crepúsculo. Sua expressão, inabalável e serena, poderia se dizer que por trás havia um pouco de felicidade, a felicidade de alguém que viveu muitas vidas, de um andarilho que percorrereu todo o mundo, desvendeu seus infinitos mistérios, e enfrentou toda a sorte de criaturas, abissais e celestes, e também o
semblante de um pioneiro, que visitou nações já perdidas, e que se sentou à mesa com os
grandes homens de outrora. Era como se, nas profundezas daqueles olhos azuis, estivesse gravada uma parte singela de cada civilização, de cada povo, de cada cultura ancestral e
moderna, das torres resplandecentes de Atlântida às pirâmides da Babilônia; das cidades-
estado gregas à majestade do Império Romano; das catedrais medievais às caravelas de Sagres;
das campanhas napoleônicas ao horror nuclear. A história de toda uma espécie vivia agora na
mente do Anjo Caído, um velho guerreiro.

LÚCIFEROnde histórias criam vida. Descubra agora