Parte 02: Ácido Ascórbico
Minha avó Nancy uma vez me disse que o maior carma das pessoas era a hipocrisia.
Agora, via que minha falecida avó falava a verdade. No corredor principal da Pensville High, uma foto enorme de Kathleen estava exposta ao lado do bebedouro, decorada com vários bilhetinhos de múltiplas cores, assinados por pessoas as quais Kath tinha pouco contato. Do lado oposto do corredor, as Rovers que se aproximavam tinham o rosto da falecida companheira de equipe no uniforme do time.
Skyler era a única que se mantinha a parte de todas as homenagens a Kathleen. Suas roupas de marca eram as mesmas de qualquer outro dia rotineiro. Seu olhar de desdém caía sobre as companheiras, que escreviam e beijavam bilhetinhos para serem postos ao lado da foto de Kathleen.
Ironicamente, Skyler era a menos hipócrita de todos nós. Ela e Kathleen nunca se gostaram, e diferentemente da maioria das pessoas, não fingia que nutria por ela algum afeto.
Em situações como essa, todos queriam alguns segundos de fama.
Senti um toque em meu ombro e era Damien, capitão do time de futebol da escola. Ele e o resto do time me cumprimentaram rapidamente, rindo de alguma coisa. Fui até meu armário e peguei os livros para a aula de química, quando Skyler e as outras Rovers pararam ao meu lado.
– Bom dia, Justin. – Ela falou, cinicamente. – Espero que ainda esteja se lembrando da nossa festinha hoje a noite. Em homenagem à Indigna, digo, Kathleen. – Ela insinuou propositalmente, dando um sorriso falso. – Arin quer muito que você vá.
Arin tinha a pele morena e os cabelos negros, devido à sua herança islâmica. Em seus olhos cor de mel, era visível que aquele brilho costumeiro não estava mais lá. A culpa sobre o que houve com Kathleen também a estava destruindo por dentro.
O peso na consciência por ter feito parte daquela brincadeira terrível.
– Kath, você pode me ajudar? – Eu estava concentrado, copiando a matéria de química do quadro negro, quando ouvi uma voz sussurrada ao meu lado. Ao olhar para o lado, vi que a causa do barulho era Kath falando com Arin.
– Qual o problema, Arin? – Kath perguntou docemente, preocupada que o professor escutasse.
– Eu não estou conseguindo esse problema. –Arin levantou seu caderno e mostrou o exercício de nomenclatura de tipos inorgânicos.
– Esse é o Ácido Ascórbico. – Kath respondeu, com um sorriso. – O nox é +4 ou +5 e por isso o sufixo ico.
– Obrigada pela ajuda, Kath. – Arin sorriu simpaticamente para Kathleen, que sorriu de volta.
– Preparados? – Quis saber o professor. – Peguem as provetas. Vamos produzir o ácido ascórbico.
Arin se afastou junto com Skyler e as outras Rovers, assim que o sinal tocou. Peguei minhas coisas e me dirigi a sala de estudos sociais, escolhendo um local mais afastado. Damien e os outros caras do time iam querer satisfações sobre o meu distanciamento, mas mesmo assim, preferi ficar um pouco sozinho essa semana.
A professora Glenda chegou à sala de aula com seus tamancos barulhentos e a sua dentadura descolada. Ela estava na foto de fundação da Pensville High em 1940 e era quase uma relíquia da cidade.
– Bom dia, classe. – Ela disse, ajeitando seus óculos.
– Bom dia, senhora Glenda. – Como professora das antigas, ela ainda exigia que toda a sala se levantasse a cumprimentasse em uníssono, para só aí dar início à aula.
Depois de alguns segundos quieta, para se certificar de que todos haviam respondido, a senhora Glenda pôs as mãos na mesa e se pronunciou:
– O que aconteceu a Kathreen Grimm no bosque dos sussurros foi imensa tragédia. Antes do final da aula, vamos todos fazer um minuto de silêncio em sua memória. – Sem esperar uma resposta por parte de nós alunos, Glenda se virou para o quadro negro e passou a copiar a matéria com um pedaço de giz.
Foi lá para a metade da explicação sobre a guerra do golfo que o diretor surgiu na porta e pediu a palavra. Glenda prontamente se sentou em sua mesa e esperou o seu superior dar um recado:
– Temos uma nova aluna. Peço que a recebam bem. Irão perceber algo peculiar nela, mas peço que não deixem transparecer, fui claro?
A sala não entendeu de imediato o comentário do diretor Norbert, até que ele fez sinal para a porta e ela se abriu. Deixei cair meu material da mesa instantaneamente e todos sentados perto de mim pareceram petrificados. Até mesmo a senhora Glenda tomou um imenso susto e fez um grande risco no quadro ao tentar puxar a perna do A.
– Caros alunos, essa é Jennifer Miles. – O diretor engoliu em seco, assim como toda a classe.
Jennifer Miles tinha os cabelos na altura dos ombros. Até aí, essa era a única diferença que havia entre ela e a falecida Kathleen. Tudo era igual. O olhar, o sorriso, a maneira com que segurava os livros. Semelhante de aparência a movimentos corpóreos.
– É Jenny. – Ela o corrigiu, seca.
– Como? – O diretor se chocou com a interrupção.
– Ninguém me chama de Jennifer. Meu nome é Jenny. – Sem esperar a permissão do diretor para sair, ela se dirigiu ao único assento vazio e ali se sentou.
O antigo lugar de Kathleen.
O diretor não proferiu mais nada, enquanto a classe murmurava baixo, assustada com aquilo.
Aparentemente, a muralha de hipocrisia havia sido derrubada.
De repente, a guerra do Golfo havia perdido a graça, e até mesmo a senhora Glenda se permitiu deixar-se levar pela surpresa. A tal Jenny percebia os olhares incisivos sobre ela, mas fingia não reparar.
Skyler, que estava sentada atrás de mim, se apoiou em meu ombro e sussurrou:
– O fantasma dela veio atrás de nós. – Ela maliciou, dando uma risada zombeteira.
Foi como se um século inteiro tivesse se passado até o sinal finalmente tocar. Peguei a minha mochila e saí correndo para fora dali, querendo pensar.
Quem era aquela?! Jennifer? Kathleen?! Era o destino me pregando uma peça??
A escola toda pareceu tremer quando ouvimos um grito estridente. Corri na direção do berro desesperado e vi um amontoado de estudantes, inclusive a novata Jenny, parados no meio do corredor.
Dois professores atravessaram o círculo feito pelos estudantes e voltaram com Arin nos braços. Ela mantinha as mãos nos olhos e gritava de dor.
Vi Damien parado em frente ao local em que Arin estava e não precisei me aproximar muito para que ele falasse;
– A Arin abriu o armário, e algo espirrou no rosto dela. Ela urrou de dor. – Damien engoliu em seco.
– Como assim cara? O que caiu no olho dela? – Perguntei, aflito.
– O professor falou uma fórmula. C6H8O6. Não sei o que é. – Damien respondeu, confuso.
A resposta veio de imediato na minha mente, mas não fui eu o primeiro a proferir:
– Essa é a fórmula do Ácido Ascórbico. – Jenny falou atrás de mim, e ainda com meu olhar caindo sobre ela, virou o corredor.
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Indigna
Mystery / ThrillerEra para ser apenas um trote. Skyler disse que Kathleen era indigna de fazer parte das Rovers, o grupo de líderes de torcida da Pensville High. Tudo era muito planejado. O que não foi, foi a morte da garota. Na mesma semana, Justin, cúmplice das...