Capítulo IX - Sentença

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Já era quase noite quando o velho Charles, depois de quase dez horas seguidas de sono, finalmente abriu os olhos. Olhou ao redor como sempre fazia ao despertar, apenas para ter a certeza de que ainda estava no hospital, deitado desconfortavelmente na maca forrada por lençóis finos e amarelados. Após certificar-se de ainda estar vestido por uma bata branca e ligado a um tubo de soro por uma fina mangueira, inspirou boa dose de ar para seus pulmões doentes, ansiando no mais fundo dos cantos de sua alma estar em casa, em sua própria cama e livre de todos os remédios e injeções que lhe ocorriam a cada novo anoitecer. Sentindo-se formigante, Charles moveu o pescoço levemente para a esquerda, conseguindo assim encarar uma das janelas que davam para a rua, e o que viu foi apenas um pedaço de céu manchado pelo crepúsculo e sem nenhuma nuvem aparente.

Estava internado no primeiro andar do hospital desde o pequeno incidente ocorrido durante a missa do padre Jullian. Trazido por George, quase carregado nos ombros, foi atendido às pressas na emergência em meio a tosses secas e descontroladas, que logo depois foram expelidas junto de pequenos focos de sangue escarlate que mancharam as roupas já por anos surradas do velho. Foi então isolado em um dos quartos do andar de cima, como sempre completamente desocupado graças à constante falta de pacientes no hospital.

As visitas das enfermeiras, sempre protegidas por máscaras brancas que lhes cobriam toda a parte inferior do rosto, ocorria de três a quatro vezes por dia, divididas entre o horário das medicações, a entrega das refeições e a ajuda para levar o velho Charles ao toalete. As visitas não duravam, porém, mais que dez ou quinze minutos, e tão logo as tarefas eram realizadas elas partiam de volta ao andar de baixo, visivelmente apressadas e incomodadas com a presença de um paciente aparentemente portador de um alto risco de contaminação. Os rumores sobre a terrível doença cresciam e se espalhavam em alarmante velocidade, e a internação e isolamento do único ser vivente em Willinghill que parecia ter sido afetado por ela apenas reforçava, com estrondoso sucesso, todo o receio de que a misteriosa epidemia finalmente atentasse contra os habitantes da pacata cidadezinha de interior.

Enquanto ainda observava o céu com olhos distraídos e perdidos, Charles passou a ouvir uma movimentação que aumentava a cada minuto. Ouvia vozes misturadas, sons de músicas distantes e até mesmo ruídos de martelos batendo em madeira. Esforçando a memória cansada ele lembrou-se, por fim, que havia chegado o grande dia da comemoração do aniversário da cidade, evento religiosamente executado ano após ano na praça principal que ficava bem em frente ao pequeno hospital. Um novo e demorado suspiro exprimiu toda a tristeza do idoso enfermo por não poder, pela primeira vez na vida, participar do tão especial acontecimento.

Algum tempo depois o som de passos apressados retirou Charles de seu lamento silencioso, e a porta do quarto se abriu com um rangido. Virando-se mais uma vez para a entrada do quarto o velho viu entrar a enfermeira Clairice, a mesma que sempre o atendia desde sua chegada ao hospital. Com seus trajes justos e muito bem lavados, ela moveu o corpo sardento até a maca, rosto e mãos cobertos por máscara e luvas, e parou bem ao lado de Charles. Trazia nas mãos uma bandeja pequena que comportava apenas um copo d'água e um segundo copo, com a metade do tamanho do primeiro, contendo dois comprimidos brancos e perfeitamente ovais.

—Boa tarde, Charles. Se sente melhor? – disse rapidamente, já apanhando o lenço que o velho usava junto à boca para conter as tosses, trocando-o por um novo.

—Não sei dizer – Charles respondeu desgostoso e sem dar-lhe muita atenção.

—Vai ficar tudo bem. Tome seus remédios e descanse um pouco mais enquanto seu jantar não fica pronto – ela continuou, bondosa, porém apressada.

In nomine patris | Dominus MortuorumOnde histórias criam vida. Descubra agora