Capítulo V - Um necromante na escuridão

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O garoto estava completamente amarrado à cadeira. Grossas cordas mantinham-no muito bem preso aos braços, às pernas e às costas do móvel, mas ele ainda assim conseguia ter forças suficientes para causar todo aquele barulho infernal que se ouvia já do andar de cima. Exibia a pele pálida, azulada como uma porcelana chinesa, contrastando com a cor dos cabelos escuros que cobriam-lhe a testa.

O mais aterrorizante, no entanto, não era a falta de cor ou a agressividade no comportamento da criança, mas sim o fato de que sua cabeça estava completamente deslocada para o lado esquerdo, caída por cima do ombro, presa ao corpo por um pescoço que aparentava ter sido torcido pelas mãos de um gigante. Os olhos, muito bem abertos, mostravam-se cobertos por uma camada esbranquiçada que quase escondia as pupilas. A boca estava também escancarada, exibindo dentes pequenos e sujos e permitindo que grossos fios de baba pegajosa escorressem pelo peito do menino.

—Santo Deus! – exclamou Jullian, que mesmo habituado a vislumbrar coisas terríveis, teve a plena certeza de jamais ter encontrado um ser humano em tão deplorável estado.

—É o nosso filho – disse George cuidadosamente, aparentemente tentando diminuir o efeito de repúdio causado em Jullian pela atual aparência do garoto. – Ele se chama Adrian. Jullian aproximou-se e tentou encará-lo, olho a olho, mas os globos oculares do menino não se fixavam em um único ponto. Moviam-se de forma frenética e animalesca por cada canto escuro do porão, enquanto ele soltava grunhidos indecifráveis pela boca de lábios finos e azulados. Repentinamente, por fim, os olhos dos dois se encontraram, e Jullian curvou-se rapidamente para trás ao sentir mais uma intensa e incontrolável onda de dor em sua cabeça.

—O que exatamente aconteceu com ele? – perguntou o padre, levantando-se lentamente enquanto massageava as têmporas com as pontas dos dedos.

A mulher que segurava o garoto naquele momento olhou para trás, procurando o rosto do marido que estava de pé bem ao lado dela. George retribuiu o rápido olhar, e Jullian percebeu que uma infinidade de palavras estava sendo transferida entre aquelas duas pessoas sem que seus lábios se movessem.

—Ele... ele estava brincando e chegou em casa com um comportamento estranho – disse ela quase em som de murmúrio. Jullian tornou a encarar o menino, desta vez franzindo as sobrancelhas e crispando os lábios como sempre fazia ao trabalhar nas engrenagens de seu cérebro. Estava certo de que aquilo era o trabalho de um demônio, que indubitavelmente se apossara do corpo de Adrian, mas jamais havia presenciado uma modificação externa como aquela. Na indiscutível maioria de casos de possessão que resolvera, a aparência física da pessoa escolhida pelo possessor tornava-se inumana, assumindo olhos com pupilas dilatadas como a de felinos e dentes que pareciam afiar-se por conta própria em poucos minutos. Além disso, a agressividade de um possuído era insana e incontrolável, e jamais seria contida por simples cordas amarradas em uma cadeira.

Para Jullian, o garoto não parecia possuído. Parecia cadavérico. E embora houvesse notado alguma cumplicidade entre o casal durante a rápida troca de olhares, nem mesmo todos os anos de estudo sobre comportamento humano fizeram-no perceber que a verdade sobre o menino Adrian estava, de fato, bem distante daquela que George contara.

—Por favor, afastem-se. Preciso vê-lo mais de perto.

A mãe de Adrian por um instante hesitou, mas logo obedeceu ao pedido do padre. Afastou-se da cadeira, arranjou a saia do vestido e ficou de pé ao lado do marido em uma injusta comparação de tamanhos. Num relance de olhos habilidosos Jullian percebeu que deram-se as mãos. Ele então agachou-se com cuidado, apoiando um dos joelhos ao piso de pedra, e tomou o lugar da mulher em frente a Adrian. O menino agora debatia-se com maior violência, os dedos mexendo-se descontroladamente na inútil tentativa de alcançar qualquer parte do corpo do homem que o examinava. Sem incomodar-se com os grunhidos animalescos – que de fato eram talvez muito mais suaves e amigáveis que os de outros casos – Jullian procurou com atenção por algum detalhe que o ajudasse a identificar o problema, mas a pouca iluminação que as duas velas forneciam atrás dele não era nem um pouco satisfatória.

In nomine patris | Dominus MortuorumOnde histórias criam vida. Descubra agora