Capítulo três

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Depois de uma noite maldormida, com o já familiar pesadelo me fazendo acordar suada e assustada, sinto-me praticamente um zumbi me arrastando novamente para o colégio. Além disso, não estou acostumada a andar de ônibus, o banco sempre assa minhas coxas e as janelas abertas fazem o meu cabelo parecer um ninho de rato.

Lamentando essa infelicidade, arrasto-me pelo corredor em que os alunos estão correndo à procura de suas salas; alguns passam por mim e me cumprimentam animadamente. Preciso me apressar se não quiser perder a primeira aula. Vou até meu armário para apanhar alguns livros e guardar minha mochila. Quando me viro, desesperada ao som do segundo sinal, sinto uma pressão forte em meu ombro, seguido de um estrondo no chão.

— Você não olha por onde anda? — pergunta uma voz feminina. Tento me abaixar para ajudá-la a recolher suas coisas. Seguro um caderno com uma capa preta de couro e estou prestes a recolher outro quando ela me afasta com um gesto hostil, arrancando brutalmente o caderno por entre meus dedos. — Era só o que me faltava! Tinha que ser você, não é, Sophia?

Olho para ela pela primeira vez. Os cabelos volumosos e cacheados completamente negros batem em sua cintura. É magra, alta e curvilínea, com olhos grandes e castanhos, boca de lábios cheios e nariz achatado. Tenho certeza absoluta de nunca a ter visto em minha vida.

— Conheço você?

— Infelizmente. — Sua voz é naturalmente debochada e irônica.

De forma inexplicável, há algo em seu rosto que me parece vagamente familiar, como se já o tivesse visto antes, mas em outra pessoa. Tento lembrar com quem ela se parece, mas é como se meu cérebro estivesse sofrendo algum tipo de bloqueio. É então que um brilho prateado chama minha atenção. Incrédula, percebo depois de um segundo que o seu colar é idêntico ao meu. Lembro-me imediatamente do tal Phelipe e de seu visível interesse no meu acessório.

— Seu colar... Onde conseguiu?

Nunca havia visto um colar como o meu. Por anos, minha mãe procurou um colar pelo menos parecido na internet, já que Isa também queria um, mas nunca achou.

— Se tentar tocar nele, eu arranco seu braço.

Ela joga os cabelos para trás e se afasta, trombando em mim novamente ao me ultrapassar. Fico encarando seu caminhar gracioso sem saber de onde a conheço. O modo como desfila pelo corredor feito um gato é sensual e elegante. Sua bolsa continua aberta, e, ao notar um papel sob meus pés, julgo que o empurrão que ela me deu foi suficiente para fazer cair um papel de lá. Mesmo de longe, consigo reconhecer o rosto de Tom Warner sorrindo e o seu número eleitoral, só que a garota havia desenhado chifres e um bigode nele. Abaixo, onde se lia anteriormente a frase de propaganda do candidato, a garota escreveu: "apodreça no inferno".

Olho para os lados, mas ninguém parece ter notado o encontro inusitado.

— Oi, Sophia. — Pulo de susto ao ouvir meu nome vindo de tão perto e me assusto mais ainda ao ver que é Natália correndo em minha direção, as bochechas vermelhas devido à falta de fôlego. Ela para ao chegar perto o suficiente e sorri, fazendo uma pausa para se recuperar da corrida. — Tudo bem? Olha, Izec me falou que o professor te cortou da apresentação. Nossa, achei muito injusto! Mas se você quiser, podemos dividir a música, assim nós três podemos nos apresentar. Sabe, a sua voz é tão bonita...

Forço um sorriso para ela.

— Tudo bem, não estou a fim de participar. Serei só da organização.

— Se mudar de ideia, me avise. Gostaria muito que cantasse com a gente. — O pior de tudo é que ela parece sincera.

Aceno com a cabeça enquanto a vejo se afastar. Penso em tudo que sei a respeito dela, mas não é muito. Sei que canta bem e toca violino, vai todos os domingos à noite para a igreja ensaiar com o coral de crianças; minha mãe sempre a elogia nas raras vezes que arrasta Isa e eu para a missa. Na escola, nunca se meteu em uma polêmica, nunca a vi com outro garoto ou tendo uma amiga. Na verdade, a mais forte lembrança que tenho dela, que fez também com que soubesse seu nome, foi no ano passado, quando organizou uma distribuição de alimentos não perecíveis para ajudar os mais necessitados. Na ocasião, Ane me disse que ela tinha tido uma in-fância muito pobre com o pai antes de ir morar com a mãe, o que faz com que se empenhe tanto em causas beneficentes.

Merda! Isso só a torna mais difícil de ser odiada. Ainda mais quan-do olho para o corredor e vejo Izec flertando descaradamente com outra garota, os olhos grudados nos seios fartos dela. Quase simpatizo com Natália. Quase.

Felizmente, Ane caminha em minha direção feliz e saltitante, de mãos dadas com o namorado, Jimmy, e eu posso afastar da minha mente pensamentos do tipo: Natália é uma versão melhorada de mim.

— Oi, Soph — Ane cantarola ao se aproximar. — Você viu que temos uma aluna nova?

— Aluna nova? No meio do semestre?

Arqueio as sobrancelhas. Então me lembro da garota que trombou em mim no corredor minutos antes. Conforme acompanho Ane e Jimmy até a sala de aula, reflito sobre como ela sabe meu nome se é uma novata.

Tempestade - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora