Mulher que inspirou Morena de 'Salve Jorge' conta o drama no exterior

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Ana Lúcia Furtado era empregada doméstica e sustentava três filhos quando, aos 24 anos, recebeu uma proposta para o que sonhava ser um futuro melhor: trabalhar como garçonete em Israel. Mas acabou virando prostituta numa boate e serviu de inspiração para a autora Glória Perez moldar a personagem Morena, a protagonista interpretada por Nanda Costa na novela “Salve Jorge”.

Pela primeira vez após seu resgate, ocorrido em 1998, Ana Lúcia se prontificou em contar todo o seu drama em entrevista ao G1 (assista no vídeo acima). Vítima do tráfico de mulheres, tema abordado na trama da TV Globo, ela relata como foram os três meses em que ficou em poder da quadrilha e a morte de sua prima, Kelly Fernanda Martins, com quem viajou para Israel e inspiradora da personagem Jéssica, de Carolina Dieckmann.

O relato de Ana Lúcia é muitas vezes mais dramático do que a ficção vivida por Nanda Costa. Ela diz que o contato com Glória Perezé frequente e que muitas vezes reconhece, entre os diálogos da novela, uma frase que contou para a escritora.

G1 — O que você fazia antes de tudo isso acontecer?
Ana Lúcia Antes de receber o convite pra ir pra Israel eu tinha três filhos: minha filha de 1 ano e pouco, um filho de 7 e outro de 10. E trabalhava de empregada doméstica. Criava meus filhos com a ajuda da minha mãe. Eu era muito próxima a Kelly, que era prima minha de segundo grau. A gente era amiga, ia para a balada juntas e foi quando, em uma dessas saídas, a gente conheceu a Rosana, em um pagode em Madureira. Ficamos amigas, ela saía com a gente, frequentava a nossa casa. Foi quando ela fez a proposta pra gente.

Não desconfiamos de nada porque é tudo muito verdadeiro"

Ana Lúcia

G1 — Como foi a proposta?
Ela falou: viajei [para Israel], cheguei agora, eu comprei essa casa, uma belíssima casa, comprei carro. Estou cheia de dinheiro. Lá fora está dando dinheiro legal. “E o que você faz lá fora”, perguntei. “Ah, a gente trabalha em lanchonete, pizzaria, e ganha US$ 1,5 mil por mês”. Poxa, você estava vivendo uma situação difícil, com três filhos pra criar, sozinha, morando na casa da sua mãe. Precisando tanto eu quanto a Kelly, que tinha dois filhos, morava com a mãe também. A gente querendo ter a própria independência, casa e dar futuro melhor pros filhos. Chega alguém dizendo que viajou, ganha US$ 1,5 mil por mês, e é fácil assim. E as pessoas oferecem passagem, tiram seu passaporte e tudo. E a gente se interessou, né?! Foi quando ela ligou pra essa pessoa em Israel, que no caso era a Célia, aí ela entrou em contato com a gente e falou que mandava uma passagem pra gente pra trabalhar em uma lanchonete lá em Tel Aviv.

G1 — Vocês só falavam com a Rosana?
Ana Lúcia Só depois de um tempo a gente passou a falar com a Célia, daqui do Brasil. Ela disse que tinha várias lanchonetes, que era brasileira e que havia várias meninas trabalhando, que dava um dinheiro legal. Aí a gente ficou radiante, ficou feliz, achando: a gente vai pra lá, fica seis meses e quando voltar compra a nossa casa. Esse era o nosso sonho. Tanto que teve mais meninas interessadas também, inclusive duas meninas que conheceram através da gente e foram na nossa frente.

G1 — Vocês em nenhum momento desconfiaram de nada?
Ana Lúcia Não, não desconfiamos de nada porque é tudo muito verdadeiro o que a Rosana apresentava pra gente aqui no Brasil. Vinha na nossa casa, sentava, almoçava. E a mãe dela também falava que aquilo era tudo verdade, que ela ia pra lá, trabalhava de garçonete lá e voltava com dinheiro. Já tinha comprado casa, carro e estava dando pra sobreviver, estava com uma vida bem melhor. E a gente frequentava a casa dela. E acreditou, né? Foi quando começaram a agir, tiraram o passaporte, tiraram passagem, compramos roupa. E a Rosana ainda falava pra gente: “Lá é um lugar em que vocês não podem andar com roupa muito pelada. Tem que levar umas roupas cobrindo o corpo”. E a gente, inocente, levava.

Ana Lúcia tira foto de celular com Nanda Costa, Paloma Bernardi (à esquerda) e Larissa Dias (última à direita), quando foi ao Projac (Foto: Reprodução de arquivo pessoal)

G1 — E vocês não tiveram mais notícia das duas que foram antes?
Ana Lúcia Não tivemos mais contato com elas, porque elas foram em uma semana e nós fomos em outra. Porque não podiam ir quatro de uma vez, tinha que ir de duas em duas pra poder passar na fronteira de lá. Isso era o que a Rosana falava pra gente. Então foram essas duas meninas. E depois fomos eu e Kelly, garimpando de país em país. Passamos por Espanha, Alemanha e depois França. Quando chegamos na França tinha dois israelenses da máfia nos esperando. Quando chegamos, dormimos no hotel do aeroporto da França. Eles levaram a gente pra jantar, passeamos, conhecemos algumas coisas lá em Paris. E depois, no outro dia, fomos pra Tel Aviv. Mas quando chegamos na França, eles já pegaram nosso passaporte e passagem, e disseram: “Tem que ficar com a gente pra passar na fronteira de Israel”. Quando chegamos em Tel Aviv, já tinha mais duas pessoas esperando a gente com carro.

G1 — Em Tel Aviv vocês foram levadas para onde?
Ana Lúcia Eu e Kelly fomos numa boa, entramos no carro. Quando nós chegamos em Tel Aviv, primeiro eles foram pra boate onde ia ficar a Kelly, que era a Playboy. Quando chegamos lá na porta, a Kelly era mais desaforada, mais agitada, mais brigona, tipo o que a Carolina está fazendo no papel, e falou: “Ana Lúcia, que lugar estranho, pra trabalhar. Uma casa velha, que lugar feio”. O rapaz disse assim: “Entra”. Nós entramos e quando chegamos na sala, havia um sofá, onde estavam muitas meninas, todas brasileiras, com roupas íntimas, sutiã e um shortinho íntimo que se usa por baixo da roupa. Entre as meninas sentadas ali tinha uma que tinha ido na nossa frente. E a Kelly falou assim: “Gente, que lugar é esse?”. Aí a Rita falou assim: “Psiu, não fala nada, depois eu te falo”. A Kelly falou: “Eu não vou ficar aqui, não. Ana Lúcia, a gente não vai ficar aqui. A gente vai embora. Você me trouxe pra me prostituir? Pra me prostituir eu me prostituía no meu país”. Ela era mais desaforada. Eu fiquei morrendo de medo. Porque aí essa menina disse pra gente: “Olha só, não faz escândalo e faz o que eles querem, porque aqui é isso que vocês estão vendo”. Aí um dos rapazes que foi buscar a gente em Paris falou: “Você vai ficar aqui, pra Kelly, e você vem comigo, pra mim”. Aí eu fui, estava morrendo de medo. Aí eu fui pra Eliá (boate).

G1 — Como foi nesse local?
Ana Lúcia — Quando cheguei encontrei a outra menina, que foi na minha frente. Aí ela me pegou na cozinha e me disse o que era. Aí já dava pra ver os quartos, a sala onde as meninas ficavam sentadas e a recepção com a gerente. Aí me explicaram: “Ana Lúcia, hoje mesmo você começa a trabalhar”. A Célia me levou pra um quarto pra trocar de roupa e conversou comigo. Eu era mais medrosa. A Kelly era mais brigona, tinha mais atitude. Eu falei que tinha que falar com minha família, porque já fazia três dias que eu não falava com minha família. Aí ela falou que à noite deixava falar com a minha família. Aí eu fui pro salão junto com as outras meninas, muitas meninas brasileiras. O tráfico de mulheres pra lá é mais de brasileiras. Você só vê brasileira. Mas realmente existem muitas meninas trabalhando em lanchonetes.

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