As coisas que não vemos

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Jessica não era uma garota fácil de lidar, mas não era também um bicho de sete cabeças.

Levantamos no dia seguinte, ela agindo como se nada tivesse acontecido e eu torcendo para repetir a dose, dessa vez, não acabaria tão rápido.

Torcer não adiantou, claro.

Passei o dia na casa dela, recebendo ordens, já que estava lá, ajudei no que foi preciso. Estava acostumado a receber ordens da minha mãe mesmo, então não fiquei melindrado com isso, pelo contrário, ocupei a mente, deixando a cabeça de baixo quieta e aprendi a fazer arroz, feijão e carne moída com batata. A garota mandava bem na cozinha.

Quando Laura chegou, comemos e elas me levaram embora, como tinha sido combinado com minha mãe na noite anterior.

***

Minha amizade com a garota ficou mais evidente na escola, nos viam indo embora juntos e os boatos começaram a correr feito pólvora acessa. Não nos importamos, pelo menos, eu não me importei nem um pouco, mas Jessica ficou incomodada com algumas piadinhas que ouvia e adivinhem? Seus amigos já não a queriam por perto mais.

Formamos um trio improvável, pois Fábio voltou a ficar comigo nos intervalos e consequentemente, com Jessica. Os dois conversavam pouco, pelo menos não havia atrito, já era alguma coisa.

Uma semana depois, minha amiga colorida ficou doente e quando pensei que tudo tinha se acertado na configuração social da escola, me enganei profundamente.

Naquela semana, recebi mais atenção que em minha vida inteira e Fábio, aproveitando a rabeira, também. Os garotos me respeitavam e as garotas me desejavam. Isso me deixou assustado e ao mesmo tempo deslumbrado. Pela primeira vez, Angélica veio falar comigo desde a última conversa que tivemos. Claro, ela precisou perceber que meu novo "status social de pegador" era sério mesmo e me puxou para conversar na saída da aula na sexta-feira.

O que eu fiz? Simplesmente a olhei de cima a baixo, virei as costas e continuei a caminhar, com Fábio ao meu lado, tentando controlar o riso e olhando para trás.

— Cara, não acredito nisso!

— Acredite. – Dei de ombros ao passar pelo portão.

— Era a Angélica, cara!

— E daí? Era a mesma Angélica que deixou claro que não pegaria baba dos outros, não sei o que queria comigo agora e na verdade, nem quero saber.

— Bom, agora você está podendo mesmo. O problema é que algumas pessoas viram e ela é popular...

— Eu não vou conversar com ela só para receber atenção, se quiserem ficar longe de mim por ignorar a Angélica, que fiquem. – Levantei a mão em despedida e quando a dele se chocou com a minha, desci correndo para chegar no ponto a tempo de pegar o ônibus que já descia a rua da escola.

Não vou mentir, estava gostando de toda aquela atenção e passei a colecionar telefones das garotas, mas a Angélica eu não queria. Não costumo guardar rancor, contudo, guardo nomes e tenho uma boa memória. As pessoas precisam aprender que o mundo dá voltas e muitas aprendem desse jeito.

Assim que cheguei em casa, peguei o telefone, joguei minha bolsa no sofá e liguei para Jessica. A verdade, é que era ela quem eu queria, não importava quantos números de telefones me dessem. A semana toda, quem atendeu as minha ligações foi Laura. Minha amiga não saía do quarto, por sorte, dessa vez ouvi a voz dela e parecia melhor. Perguntei como ela estava e fiquei feliz por ouvir uma resposta positiva, geralmente, quando tratada, apesar de derrubar, a virose não costuma durar muito tempo.

Nem começamos a conversar e ouvi a voz de Laura chamando o nome dela, então nos despedimos.

***

Meu pai estava trabalhando muito e minha mãe também, certo de que eles não acordariam, desci para assistir um pouco de tv, deixei o volume baixinho para não correr nenhum risco. Em casa funcionava assim, durante a semana podíamos escolher um programa ou filme para assistir e eu só podia aproveitar mais no fim de semana, o que não incluía a madrugada de sexta-feira.

Depois de um tempo, comecei a ficar com muito sono e o filme já estava no fim, assim que subiram os créditos, levantei para beber água e quase liguei a luz da cozinha, pois a tela preta com letrinhas brancas da tv não colaborava para clarear.

Quando estava com a mão no interruptor foi que ouvi o barulho da porta abrindo no andar de cima, minha única reação foi procurar um lugar para me esconder. Usei o balcão e fiquei abaixado.

Ouvi os passos sorrateiros do meu pai descendo a escada e comecei a rezar para ele não entrar na cozinha, pude ouvi-lo desligando a tv e resmungando e em seguida, a porta abrindo e fechando, devagar. Respirei mais aliviado quando o barulho do motor do carro ecoou e aproveitei para sair da cozinha.

Precisei parar de repente, se tinha coisa pior que ser pego pelo meu pai, era ser pego pela minha mãe, que estava parada no alto da escada, por sorte, olhando fixamente para a porta de entrada da casa e nem notou minha presença, mesmo no escuro, mães enxergam seus filhos.

Algo em sua postura chamou minha atenção e pude ouvir pequenos soluços antes de vê-la voltar e desaparecer pelo corredor.

Aquilo estava estranho, meu pai não tinha motivos para sair de madrugada. Eu precisava descobrir o que estava acontecendo.

***

Na manhã seguinte, acordei sentindo o cheiro de café e desci, guiado pelo estômago. Nós nunca percebemos o que está errado e a maioria dos pais preferem esconder certas situações dos filhos, os meus não eram diferentes, porém, os olhos marejados de minha mãe demonstravam que o que quer que estivesse acontecendo, estava ficando difícil de esconder.

Quando perguntei por meu pai, a vi soltando um longo suspiro e seus olhos inchados brilharam com mais intensidade ao responder:

— Já saiu.

Meu coração apertou ao ver minha Ana, – uma das maneiras de como a chamo hoje – triste daquele jeito. Ver a pessoa mais forte de sua vida, do nada, prestes a desmoronar, dói na alma. Não importava o que tinha acontecido, naquele momento senti muita raiva do meu pai, não era qualquer coisa que deixava minha mãe naquele estado e não importava mais, a culpa era dele, isso bastava.

Não sentei para tomar café, contornei a mesa, me aproximei dela, tirei a xícara de café de sua mão, colocando em cima da mesa e a abracei.

Alguns segundos depois e vi minha mãe desabar pela primeira vez, na verdade, senti. Seu corpo chacoalhava pelos soluços e suas lágrimas molhavam meu ombro penetrando pela camisa. Apertei ainda mais o abraço, prometendo a mim que cuidaria para que nunca mais ela chorasse daquele jeito e caso fosse inevitável, que estaria ali para ampará-la.

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