Recrie e repita

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Atrás de todos os holofotes que iluminam apenas o lado ascendente de São Paulo, em uma rua escura que mal permite a passagem de carros, havia uma vida que brilhava.

A fonte era um garoto do qual muito se falava na redondeza, e quase nunca eram elogios. As boas almas do local temiam por ele, principalmente com o pai arrogante, e muitas vezes violento, que tinha.

A preocupação nunca atingiu a criança, alias mal foi percebida por ela. Em parte pela proteção da mãe, que o encorajava a manter seus gostos para si, de forma que pessoas ignorantes não usassem de sua força para tentar torná-lo inferior.

Mas, naquela noite em específico, ela se permitiu deixar o filho feliz, como sempre quis fazer.

O quarto em que estavam era escuro, iluminado apenas pela luz fraca que vinha da sala. O menino mantinha os olhos fechados, embora a mãe visse que ele os tentava abrir escondido.

— Cuidado para não tropeçar! — Avisou. — O presente não vai fugir.

Ele ria e batia palmas. Ela não sabia se algum dia já tinha visto sua criança tão feliz.

— Uma penteadeira! — Exclamou.

Era um móvel razoavelmente pequeno, mas para ele era maior que o universo. Uma enorme bancada suspensa por três gavetas, que cheiravam a mobília nova. Por cima, subia-se um grande espelho, refletindo o pequeno cômodo.
Ele subiu na cama para que pudesse ver seu próprio reflexo, sempre com o sorriso estampado.

— Não vai abrir as gavetas? — a mãe perguntou.

Apressado, esticou seu braço magro para elas.
Deu um grito na primeira que abriu.

— Quanta coisa!

De fato. Haviam mais bases, sombras, rímeis e batons do que o garoto sabia contar. Ele experimentou o primeiro que viu, e admirou seus lábios vermelhos no espelho.

A mãe, ao seu lado, não conseguiu evitar um sorriso. Era o tipo de coisa que fazia valer a pena todas as horas extras trabalhadas.

— Filho, em hipótese alguma deixe seu pai ver isso.

Ele assentiu, mas nem se deu ao trabalho de responder. Colocou mais um rímel e exclamou:

— Mamãe, esse é o melhor dia da minha vida!

24 anos depois
A maquiagem estava borrada. Foi a primeira coisa em que reparou ao se olhar no espelho da velha penteadeira.

Apesar do móvel suscitar hoje mais lembranças ruins do que boas, ele nunca conseguiu abrir mão. O espelho rachado nas pontas, as manchas na bancada e a ultima gaveta que não se sustentava mais o lembravam um pouco de quem ele era, mesmo que fosse um fracasso.

Não era a primeira vez que pensava em desistir. Aliás, já era quase um pensamento constante, resultado de qualquer frustração que aparecesse. Ultimamente, não tinham sido poucas.

Se forçou a encarar o reflexo. A peruca estava torta, o rímel escorrendo, e o batom mal era visto. O semblante era de pura derrota.

A derrota de alguém que não havia conseguido superar a morte de uma mãe compreensiva, ou a convivência com um pai controlador. Que havia admirado a coragem alheia por toda a sua vida, mas nunca mostrou nenhuma para se defender.

Abriu a gaveta, procurando lenços. Eram para tirar a maquiagem, mas os soluços irromperam e as lágrimas tomaram conta. Ainda com a mão ali dentro, sentiu-a encostar em um pequeno retângulo metálico.

Ali estava. Aquele primeiro batom, do dia maravilhoso em que sua mãe permitiu que ele se amasse.

Ele mal conseguia usá-lo, de tão pouco que restava. Mas esfregou um pouco na mão e lembrou-se de si mesmo. Era alguém admirável, no fim das contas, e isso ia muito além da beleza.

Por hoje, continuaria vivendo.

"Registre os momentos em que se sente mais apaixonado por si mesmo: o que está vestindo, por quem está cercado, o que está fazendo. Recrie e repita" Warsan Shire.



Day 13: escreva algo referente a uma citação que goste.
Gosto muito dessa citação, simples porém um lembrete constante para mim. Fiquei bem orgulhosa do que produzi com base nela, e espero que tenham gostado. Não se esqueçam de clicar na estrelinha!

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