O percurso

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O Hauptsturmführer Kittel suava frio. Ele usava uma flanela branca para limpar sua testa e seu pescoço. Naquele momento, apenas desejava ter velocidade super sônica. Queria chegar ao seu destino em questão de minutos ou mesmo segundos. Tzipora colaborava muito. Ele olhava para o retrovisor e só o que conseguia ver era uma coisinha misturada a um lençol moribundo, além de um rosto rosado e bastante calmo.

A estrada entre a Polônia e a Alemanha não era lá das melhores. Apesar do Reich se preocupar bastante com seu território ocupado, os bombardeios constantes destruíam tudo em tamanha velocidade que era impossível um reparo imediato.

Kittel pisava fundo no acelerador do Mercedes. Era muito perigoso viajar aquela hora da noite com uma bebê judia dentro de um carro Nazista. Seus olhos iam da estrada ao retrovisor em fração de segundos. Suas pernas começaram a tremer o que o atrapalhou na condução do veículo. Sem querer, o carro acabou indo para o acostamento, o que chamou atenção dos guardas da estrada.

Havia um posto de guarda bem próximo de onde Kittel se encontrava, a última cidade polonesa, divisa com a Alemanha Nazista. Os guardas de baixa patente se aproximaram do Mercedes correndo e apontando suas armas. Eles gritavam, mas Kittel estava tão nervoso que não conseguia ouvir nada. Ele só pensava em manter Tzipora à salvo. Sua filhinha.

Os guardas se aproximavam. Ele ouviu latidos. Pastores alemães acompanhavam a patrulha da estrada. Kittel agora suava mais frio e tremia mais ainda. Eis que uma ideia ligeiramente estúpida lhe ocorreu. Era isso ou mais nada.

Heil Herr Hauptsturmführer. — disse um dos guardas.

Heil... — respondeu Kittel sem muita convicção.

— O que Herr Hauptsturmführer faz  por aqui a uma hora dessas? Está perdido? Indo para o lado errado? Auschwitz fica para lá. — disse o guarda apontando o polegar direito na direção contrária à frente do carro.

— Hoje estou encarregado de um serviço diferente. Você sabe, amigo, o campo está se esvaziando de arianos. Todos estão indo para o front aos mandos de nosso Führer. A guerra precisa deles agora. E não tem ninguém disponível...

— Vá direto ao ponto por favor Hauptsturmführer. — disse o guarda bem ríspido.

Kittel rezava a todo momento para que Tzipora não chorasse no banco de trás. Eles iriam ver, iriam perceber e seu plano iria por água a baixo.

— Estou transportando papéis higiênicos. Preciso chegar à Berlim antes do Sol nascer ou ninguém fará suas necessidades amanhã. — o capitão tentou manter sua postura o mais séria possível. Estava com as mãos para trás. Alinhado.

— Deixe-me ver isso. — ordenou o guarda.

Kittel quase desfaleceu ali mesmo. O suor frio voltou a lhe percorrer o rosto e o pescoço. Respirava fundo. Contava de 1 até 10, de 10 até 1 mentalmente e sucessivas vezes. Aquele momento parecia nunca terminar.

— Tudo certo. Pode ir Herr Hauptsturmführer. Apenas dirija com mais calma. Eles podem segurar suas necessidades, tenho certeza. — o guarda deu dois tapinhas nas costas de Kittel e gargalhou.

Kittel entrou dentro do carro e saiu feito um furacão.

Dresden, 7:45 a.m.

Kittel adentrou à sala de sua casa com aquele embrulho de lençóis moribundos. Tzipora era tão calma que ele não conseguia achar uma explicação lógica para aquilo. Ela nasceu em meio ao horror. Durante todo o tempo, ficou se culpando por ter colocado vários rolos de papel higiênico por cima de seu corpo franzino, apenas para enganar os guardas. Graças a Deus ela não tinha se sufocado. Ele se culparia para sempre se a tivesse matado.

— Érika! — ele gritou.

Mas, foi Liesel quem apareceu pulando e rodopiando na sala e gritando: "papai, papai" repetidas vezes.

— Xi! Faça silêncio minha princesinha. A sua irmãzinha está dormindo. — ele disse calmamente.

— A minha irmãzinha? Ela já chegou papai? Quero vê-la!

— Agora não princesinha. Mais tarde. Ela precisa descansar. Onde está sua mãe?

— Estou aqui querido. — uma linda mulher com longos cabelos negros e olhos verdes apareceu.

— Oi querida. Precisamos conversar. — disse Kittel beijando a testa da esposa em sinal de carinho.

Kittel e Érika estavam na cozinha. Ele pediu um café forte. Ainda segurava Tzipora nos braços.

— É essa menininha? — questionou Érika servindo o café e torradas.

— Sim. Ela nasceu nessa madrugada. Seu nome é Tzipora.

— Tzipora? Que nome estranho!

— Por favor, não mude o nome. — disse Kittel tentando se manter fiel à promessa que fizera à Wjera.

— Foi a "mãe" dela quem pediu isso? — disse Érika fazendo as aspas com a mão ao pronunciar mãe. Ela tinha um semblante de desaprovação.

— Sim, foi. E quero manter essa promessa.

— Ela nunca mais vai ver essa judia na vida Kittel...

— Opa, espera aí. Não vamos ofender ninguém por aqui. A nossa filha é uma judia também. — disse Kittel repreendendo a esposa.

Érika permaneceu calada. Pegou Tzipora nos braços e deu-lhe uma mamadeira cheia de leite. Já estava tudo programado para a chegada de um bebê. Era o sonho de Érika ter mais um filho, mas era impossível para ela gerar uma criança. A gravidez de Wjera foi uma oportunidade para realizar tal sonho.

Érika lembrou-se de quando viu Liesel pela primeira vez. Quando aquela princesinha chegou, também pelas mãos de Kittel. Liesel não veio dos campos de concentração, mas sim de uma família ariana muito pobre, segundo seu marido. Mas ela pôde lhe dar o nome, o mesmo de sua avó. A emoção de receber Tzipora foi a mesma de quando recebeu Liesel. Ela sentia como se tivesse gerado as duas. De certa forma, ela esperou quase que nove meses pelas duas. Esperou que suas mães biológicas as gerassem. E ela sentia toda essa ansiedade. Contava, as semanas, os meses e imaginava o rostinho do bebê. Será uma menina ou um menino? E foi presenteada com duas lindas meninas. Era um sonho realizado.

— Ela tem um irmão gêmeo. — disse Kittel entre os dentes.

— O que? A judia pariu dois bebês?

— Não fale dessa forma Érika. Por favor. Ela tem nome, é Wjera. E sim, ela pariu dois. Nem eu e nem Helena esperávamos por isso.

— O que aconteceu com o outro? Ele morreu? — uma lágrima escorreu do olho direito de Érika. Foi inevitável.

— Helena o adotou. — disse Kittel colocando um pedaço de torrada na boca e dando um gole no café.

— Menos mal...

Um silêncio. Érika terminou de dar o leite a Tzipora e a levou para o andar de cima da casa, onde deu-lhe um banho bem demorado. Ela ninava sua nova filha no colo com Liesel ao lado a enchendo de perguntas sobre a nova irmã. Érika pedia silêncio em vão. Assim que colocou a neném no berço, um estalo veio à mente de Érika e ela se virou para Kittel, como se sentisse um espasmo:

— E se algum dia ela encontrar esse irmão?

Os gêmeos de Auschwitz Onde histórias criam vida. Descubra agora