Um filho para Helena

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— Consegui um resto de sopa de beterraba com casca de batata para você. — disse Helena colocando um prato de alumínio no colo de Wjera.

Wjera olhou aquilo e sentiu um embrulho no estômago. Não queria comer. Queria estar com os filhos. Ela olhava para Helena Schäffer a sua frente ninando Tsalig e dando-o leite num conta-gotas usado da enfermaria. Por mais fraca e debilitada que estivesse, um colostro amarelado ainda insistia em pingar de seus seios, o que lhe despertava mais angústia ainda.

— Dei-me Helena... — ela disse fraca.

— Não Wjera! É melhor você comer essa sopa rápido, antes que dê a hora da chamada e as Kapos* não encontrem você lá no barracão. Já pensou no tumulto? Já pensou nas consequências?

Wjera se calou. Queria chorar. O momento de ter os filhos deveria ser algo prazeroso e feliz, e não triste como estava sendo. A imagem da pequena Tzipora sendo levada nos braços do Hauptsturmführer Kittel toda embrulhada num lençol moribundo ainda lhe corroía. "Eu nunca mais irei vê-la", pensou. "Hauptsturmführer Kittel não vai me devolvê-la como prometeu."

— Wjera, coma! — Helena a olhava com os olhos esbugalhados e um rosto vermelho, sinal de raiva.

Wjera engoliu, sem nenhuma vontade, duas colheres da sopa rala sem sabor que mais parecia uma água vermelha fervida. Ela sentia falta de seu pequeno apartamento em Potsdam ao lado de Normand. Aquela comida quentinha que dava água na boca. Os abraços e beijos do marido. A liberdade.

Onde estará Normand?

— Eu não quero isso Helena. — disse Wjera empurrando o prato para o lado como uma criança birrenta.

— Coma. Você não sabe quando terá uma refeição descente novamente. — disse Helena já irritada com a situação. Agora, ela fazia Tsalig arrotar.

Wjera engolia a sopa com certa repulsa. Aquilo tudo era mera obrigação.

As 4:00 da manhã já se aproximavam. Era a hora da conferência de barracões em Birkenau. As Kapos já estavam a postos com seus cassetetes em punho. Wjera estava prostrada no fundo do barracão 26 junto com as demais judias alemãs e polonesas prisioneiras de Birkenau. Ela não queria se levantar e ir trabalhar forçadamente em Kanada**. Apesar de ser um bom serviço dentro das dependências de Auschwitz.

Schnell***, puta! Levanta sua vadia! — gritou uma Kapo, conhecida como "Kapo macho" por ter finos pêlos no buço, simbolizando um bigode.

A Kapo macho bateu o cassetete nas pernas de Wjera três vezes com tanta força que um hematoma roxo se formou em sua panturrilha. Ela começou a chorar baixo, o que fez a Kapo macho a bater mais ainda.
Outra Kapo surgiu no campo de visão de Wjera e a puxou para fora do barracão 26 a jogando na lama de Birkenau que ficava na entrada do alojamento. Seu rosto e seu uniforme listrado ficaram completamente sujos. Ela tentou se reerguer, mas foi repreendida com um soco na cabeça que a fez ficar tonta e vomitar a sopa rala de beterraba e casca de batata. Como aquilo mais parecia um sulco estomacal, muito frequente de ser expelido em vômitos, as Kapos não se importaram. Acharam que estava misturado com sangue, também muito frequente de ser expelido.

Wjera só sabia pensar em seus gêmeos. Os gêmeos de Auschwitz.

Helena Schäffer estava na província de Oswiecim, nos arredores de Auschwitz, em um quarto improvisado em cima de um bar. O pequeno Tsalig dormia em seus braços. Ela estava admirada com seu novo filho. "Por que diabos um homem nunca foi capaz de me dar uma criança assim?", pensava. "É claro Helena! Você não tem útero." Ela se lembrava infeliz da cirurgia que fizera há 5 anos para retirar seu útero. "Mas bem que eu podia ter engravidado antes dessa cirurgia."

Helena preparou um colchão no chão com lençol bem limpo para acomodar Tsalig até comprar um berço. O bebê foi acomodado no colchão enquanto Helena fervia mais leite em um fogão improvisado no canto do quarto. Ela olhava fixamente para o menininho de 1,5 quilos que foi gerado em meio ao horror do nazismo. Helena não era tão sensível a ponto de chorar, mas estava profundamente comovida com toda aquela situação. Era apavorante.

Helena desceu as escadas de seu quarto em direção ao bar em baixo a procura de mais leite para Tsalig. Queria estocar muito leite para seu bebê, nunca se sabia quando um novo racionamento de alimentos poderia atingir a pequena província de Oswiecim de novo. Mesmo que o Reich inteiro passasse por isso, as províncias menores sempre davam um jeito de contornar o racionamento através do mercado negro.

— Eu não sabia que você estava parida enfermeira. — disse o balconista.

— Isso não é da sua conta seu esfarrapado! — respondeu Helena com raiva.

— Mas é verdade enfermeira. Você não tinha uma barriga grande até ontem. Ou você anda roubando crianças daquele lugar?

— Não te interessa! Já falei. Anda, me dê o leite.

— Não sei como você consegue entrar naquele lugar de nazistas...

— O leite já! — Helena gritou enfurecida com o rosto avermelhado.

O balconista lhe entregou o leite ainda resmungando sobre Auschwitz e o fedor que o lugar emanava.

Helena entrou em seu quarto e avistou dois pequenos pares de olhos abertos. Olhos castanhos. Tsalig não se dava ao trabalho de chorar.

— Oi meu amorzinho. Você já acordou? Aqui... eu... a mama****... já lhe trouxe leite. — Helena usou uma voz tão doce e suave que quem a conhecia não a iria reconhecer se a ouvisse.

*Kapos - Prisioneiros do Reich que trabalhavam na segurança e ordem dos demais prisioneiros do campo;
** Kanada - local em Auschwitz onde todos os pertences dos recém-chegados eram depositados e cabia aos demais prisioneiros separar e organizar esses pertences;
*** Schnell - rápido em alemão;
**** Mama - mãe em alemão.

Os gêmeos de Auschwitz Onde histórias criam vida. Descubra agora