Potsdam, Alemanha 10:35 a.m.
Eileen Hoff limpava os degraus da escada do apartamento no segundo andar na Bundesstrasse número 15. A empregada, agora dona do apartamento, ouviu duas batidas rápidas e fortes na porta.
— Você é Wjera Lehmann? — perguntou o agente da Gestapo, identificado como H. Weber, trajando um sobretudo marrom.
— Nein Herr polizei*. Meu nome é Eileen Hoff e sou a dona daqui. — ela disse estendendo sua identidade ariana para o agente que a conferiu minusiosamente em busca de alguma falsificação. Por recomendação de Wjera, Eileen sempre portava consigo sua identidade para simplificar esses casos de vigia por parte dos nazistas.
— Eu tenho certeza que há uma judia vagabunda aqui com esse nome. — disse Weber impaciente — ela finge ser professora ariana usando o sobrenome da mãe.
— Não há ninguém aqui Herr polizei. Eu sou a única que mora aqui. O senhor deseja ver a documentação do apartamento?
O agente Weber assentiu e adentrou o apartamento com impaciência. Eileen pegou a escritura do apartamento confirmando que era dela. O agente estava intrigado.
— Certo Frau Hoff, perdoe-me por incomodá-la.
Wjera sempre alertou Eileen sobre isso. A qualquer momento o seu disfarce poderia ser descoberto. Wjera não poderia ser considerada integralmente uma judia, pois era filha de uma mulher cristã e judeus só são considerados judeus caso nasçam de uma mãe judia. Mas sua mãe, Christine Lehmann havia se apaixonado ainda na adolescência por um judeu três anos mais velho, Joshua, que viera a ser o pai de Wjera mais tarde. Usando apenas o sobrenome ariano Lehmann, ela conseguiu se disfarçar em meio ao antissemitismo perpetuado na Alemanha desde a ascensão de Adolf Hitler em 1933. O que não aconteceu com seu marido Normand que tinha que viver escondido desde então. Graças a Eileen, a jovem empregada, órfã, que não tinha para onde ir, que eles puderam continuar no apartamento em Potsdam, passado para o nome de uma legítima ariana para evitar futuras investigações nazistas.
De certo modo, Wjera e Normand conseguiram se mascarar por quase 11 anos das garras macabras de Adolf Hitler e seus capangas insanos. Mas naquela manhã de 20 de Dezembro de 1943, a sorte não estava a favor deles.
— Guten morgen** Eileen... hoje as aulas foram suspensas por causa dos riscos de bombardeio. — disse Wjera adentrando feliz em seu apartamento.
Eileen só conseguia ver a expressão de espanto no rosto da patroa ao encarar o agente Weber dentro do apartamento da Bundesstrasse número 15. E o agente Weber encarando a patroa com certa fúria.
— Wjera Lehmann? — indagou o agente.
— Sim senhor, pois não. — Wjera tentou se manter calma.
— Eu vim buscá-la junto com Normand Braz, sua judia imunda! Pensa que pode enganar o Reich até quando?
— Não entendo Herr polizei, eu sou alemã, meu sobrenome é Lehmann... — ela tentou ao máximo ignorar os insultos de Weber. Tais insultos que só estavam começando.
O agente Weber deu um tapa no rosto de Wjera que a fez cambalear para trás em um sobressalto. Ela sentiu um ardor em seu rosto, logo após sentiu uma dor intensa na maxila, havia ganhado um soco.
— Sua vagabunda! Imunda! Judia desgraçada! — ele vociferava dentro do apartamento enquanto golpeava Wjera como podia.
Uma figura magra com barba por fazer, óculos de grau embaçados e cabelo despenteado chegou à sala do apartamento apavorado. Quando Wjera deu por si, Weber e Normand estavam em luta corporal no meio da sala. Eileen só sabia olhar boquiaberta para aquilo tudo.
— Juden*** imundo me larga! — Weber vociferava.
Outros agentes da Gestapo adentraram o apartamento e começaram a vasculhar todos os cantos em busca de pertences de valor. Outros, continham e espancavam Normand. Um deles agarrou Wjera pelos pulsos e a conduziu escada à baixo com violência, marcando seus pulsos com hematomas vermelhos. Ela chorava. Logo atrás Normand vinha carregado por três agentes. Havia cinco carros da Gestapo estacionados na Bundesstrasse e os vizinhos olhavam aquela cena assustados. Até então, todos achavam que Wjera era uma ariana viúva. Eileen também foi levada pelos agentes da Gestapo por ter traído a pátria.
Wjera, Normand e Eileen foram conduzidos em furgões até a estação de trem em Berlim, de onde partiram num vagão de gado totalmente fechado, abarrotado de gente, trancado e fedido. As pessoas estavam amontoadas, de pé, depositando suas necessidades em meio as pernas sem nenhuma privacidade. Alguns suplicavam por comida e água, outros se apegavam a fé e Wjera apenas sentia-se culpada por fracassar em seu plano de manter sua pequena família à salvo.
Foram 3 dias de viagem angustiantes. Sem comida, sem água e agora em meio a cadáveres putrefatos. Quando o trem por fim parou, o horror subiu a espinha dorsal de Wjera como um arrepio.
Auschwitz-Birkenau, 1:57 p.m.
Eileen foi morta diante dos olhos de Wjera com um tiro na cabeça por um oficial da Schutzstaffel (SS)****.
Wjera e Normand foram separados em fileiras diferentes. Uma para mulheres e outra para homens. Nunca mais se viram.
Wjera sentiu, enganada, que poderia respirar um ar mais puro ao sair do vagão de gado. O ar de Auschwitz continha pequenas partículas de fuligem. "Vocês respiram seus parentes queimados nos fornos", disse um homem com uniforme listrado que caminhava contra o sentido da fila. Ele era horroroso. Careca, magro como uma vareta, amarelo e encurvado. Wjera quis vomitar ali dentro.
Todas as mulheres da fila receberam ordens de retirar todas as roupas e entrar em um cômodo escuro que fez Wjera temer a morte. Havia chuveiros no teto. Deles, saiu uma água fria e amarronzada. Um banho depois de três dias.
Ao saírem do suposto banho, foram conduzidas para um salão no meio de um local lamacento e de aspecto cinza. Foram inspecionadas, inclusive os órgãos genitais, e uma identificação foi tatuada no pulso de cada uma com agulha e tinta preta, ficando marcada ali para sempre. Wjera sentia beliscos em série em seu pulso direito, preferiu não olhar. Apenas viu depois de finalizado: J-1842.
— Bem-vinda a Birkenau moça. — uma voz estridente soou bem próxima ao ouvido esquerdo de Wjera. Ela olhou em linha reta e viu uma figura bem intimidadora. — sou o médico do campo, Jozef Mengele, você está grávida?
É claro que Wjera ainda não sabia de sua gravidez, que naquela época não passava de poucos dias. Ela disse que não apenas acenando a cabeça e abaixou o olhar a fim de não encarar aquele médico de novo. Ele transmitia medo.
Wjera foi alojada no barracão 26 junto com outras judias alemãs e algumas polonesas. Em geral, era um barracão pacífico o que não chamava a atenção das Kapos encrenqueiras. Na maioria das vezes, prisioneiras russas davam mais trabalho em relação ao comportamento.
Desde o início Wjera foi designada para trabalhar em Kanada. Ela tinha esperanças de rever Normand. Não tinha ninguém no mundo a não ser ele. Seus pais já eram falecidos. Era filha única. Queria tanto ter seu marido consigo.
Onde estará Normand?
* Nein Herr polizei - tradução do alemão "não senhor policial";
** Guten morgen - bom dia em alemão;
*** Juden - judeu em alemão;
**** Schutzstaffel (SS) - organização paramilitar ligada ao nazismo. Possuíam uniforme negro e eram encarregados de cuidar da organização dos campos de concentração durante o Holocausto.
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Os gêmeos de Auschwitz
Fiksi SejarahCapa por:@leeh-adorandoojerry Wjera Lehmann é uma professora judia que acabou sendo levada a Auschwitz-Birkenau durante o Holocausto. Lá, ela descobre que está grávida. Helena Schäffer é uma enfermeira do Reich que foi designada para trabalhar na e...