Enquanto eu escolhia com os dedos a chave certa para àquela porta, o relógio ia fazendo alternadamente o seu tic-tac. Já era mais de meia-noite, e eu estava saindo tarde do Asilo porque teve uma pequena festinha de boas-vindas a uma nova integrante do nosso Lar. Quando estava prestes a girar a maçaneta, ouvi um barulho. Inclinei-me para olhar o corredor que estava escuro. Soltei a porta sorrateiramente e fui em direção ao barulho que ecoou naquela grande casa. Ele se repetia, como se fossem pequenos passos, finos e bem planejados. Ao passo que fui me aproximando, o barulho ia se distanciando. Deslizei por um interruptor e me espantei com o que vira:
- Ah! Gerard! - eu disse ao ver um dos nossos idosos, preparando-se para se esconder minuciosamente atrás de uma cadeira.
Ele tomou um susto. Arregalou seus olhinhos e ficou sem graça. Fez um cara de triste e saiu de trás da cadeira para ir de encontro à mim.
- Desculpe, minha filha. Eu só queria ver a Lua.
Ele era muito educado, Gerard Hindels tinha sessenta anos e era o que estava há mais tempo na casa, ele foi trazido para cá quando ficou viúvo, com quarenta e nove anos.
- O senhor pode ver a Lua da janela do seu quarto sr. Hindels, ele é o maior de toda a casa e fica no último andar. - Eu disse tentando convencê-lo.
- Você não me entende, pobre criança. De que adianta ver somente a Lua e não sentir a brisa que vem com ela? - astuto, ele retrucou.
Eu dei um sorriso. Ele disse:
- Para onde a senhora ia?
- Para minha casa...
- E porque a senhora não dorme aqui? - ele arregalou os olhinhos de novo, e com muita fineza, puxou a cadeira para eu me sentar. Com um gesto, me induziu.
- Porque eu tenho que ir ver meu namorado, eu tenho uma vida atrás daquela portinha ali - apontei para a porta da sala e ele fez uma cara estranha. Eu sorri de seus modos e aceitei o convite de sentar um pouquinho na cadeira.
- Você aprecia a sua vida, senhora? - ele se sentou e fincou seus braços em cima da mesa, com uma postura de interrogador.
- Claro que sim! Eu amo o meu trabalho, e me inspiro com cada história que ouço de vocês. Além de que aprendo muita coisa e me sinto bem em fazê-los felizes. - eu disse, suspirando de realização.
- Isso é lindo. Mas não vejo você apreciar tanto assim, minha filha.
Senti um aperto no peito, pequeno, mas que foi o suficiente para eu me levantar rapidamente:
- O senhor está descalço, e ainda por cima está muito frio lá fora. Melhor voltar para o seu quarto, Sr. Gerard.
Ele franziu o cenho, e não se levantou.
- Pare de ser teimoso... vamos lá, eu te ajudo a subir. - eu disse lhe dando as mãos.
- Viu como eu estava certo? - ele deu de ombros.
Soltei-lhe uma cara de dúvida, e ele retrucou:
- Você acha que eu não vejo você chorar nos cantinhos da casa, quando vê que um idoso foi embora, ou quando alguém lhe chama de filha? Você passa mais tempo aqui do que em sua casa, como pode ter um namorado dessa forma?
Fiquei em pânico. Eu era a orientadora deles e não podia passar insegurança, nem qualquer outro sentimento que me colocasse em um patamar onde eles não tivessem sequer confiança em mim.
Eu não consegui conter uma reação.
- Calma, Emma. Eu não quis te deixar assustada. Só quero te ajudar a ver o que vale a pena.
Ele permaneceu sentado, então eu me sentei novamente.
- Eu não poderia passar essa insegurança a vocês, falhei miseravelmente. - eu disse cabisbaixa.
- Não diga isso, você está louca? Temos o dever de nos permitirmos a mostrar como somos verdadeiramente. Sei que você esconde seus anseios, porque aqui precisamos de afeto, segurança, confiança e amor. Mas acredite, Emma, nós amamos você e nos preocupamos.
Eu não pude conter uma lágrima, e ele me deu sua mão, que estava bem gelada.
- Sabe por que eu queria ver a Lua hoje e sentir a brisa lá fora?
Eu acenei que não.
- No dia 9 de fevereiro, de 1978 eu estava em um quarto, em uma grande casa, olhando para o campo e imaginando como deveria estar o outro lado - do qual eu não podia olhar. Cheio de flores, com um tapete vermelho, talvez? Era o que eu pensava, jovem, com um terno, fazendo o nó na gravata e tentando não deixar o nó da garganta cada vez maior. Eu estava trêmulo, e só queria sentir uma brisa, pois em poucas horas eu seria uma pessoa diferente. Eu não podia sair dali, nem ao menos atravessar o Hall pois do outro lado teria uma outra pessoa apertando a cinta em seu quadril e colocando a meia calça. Eu andava de um lado para o outro da sala, nervoso, ansioso e querendo que aqueles pequenos miúdos minutos passassem logo. Eu abri uma porta de vidro que dava para uma varanda que contornava a parte inteira da casa. Fui andando sobre ela e tentando não olhar para baixo para ver se já tinha chegado algum convidado. Até que, eu a avistei, encostada na parede, inclinando-se para o céu, mas de olhinhos fechados e somente com uma pano branco em sua volta (aquele não era o tal vestido que a deixava sem ar, ainda bem) quando ela ouviu os passos, olhou para mim que, sem muito saber o que fazer, tapei meus olhos com as mãos. - enquanto o senhor Gerard ia me contando, seus olhos brilhavam a cada minuto e minha respiração ia se acalmando. - lembro do que a Rosie me disse até hoje: "Deixe de ser palerma e me olhe." Andando até a mim, ela tirou as minhas mãos, liberando completamente a minha visão, e que visão... ela estava linda, e me deu um beijo. Ficamos alguns minutos olhando o céu e sentindo a brisa, estava quase anoitecendo, pois nosso casamento seria a noite, foi quando a Lua começou a aparecer e ela me disse: "Gerard, você me promete que mesmo se um dia a gente acabar ficando longe um do outro, que quando estiver nervoso, ansioso e não tiver como vir até a mim, você vai recorrer à Lua? Você vai se lembrar que antes do nosso casamento, a gente se encontrou por um acaso bem aqui, então ela vai ser o nosso amuleto, e onde vamos sentir um ao outro, caso fiquemos separados nem que seja por minutos".
- Gerard... isso é... - eu ia dizendo quando ele continuou falando:
- Nos casamos depois, e sempre que eu conto essa história, eu fico me perguntando o porquê que dizem que ver a esposa pronta (ou quase pronta) antes do casamento da azar? Por muito tempo, depois que ela faleceu, eu coloquei a culpa em mim, por ter saído do quarto antes de casarmos, mas depois eu fui entender o quão valeu a pena ter visto que a pessoa que eu iria me casar, tinha saído também na esperança de que eu a viesse encontrá-la de um jeito ou de outro. E aqui estava eu, hoje, depois de quarenta anos, querendo a ajuda dela... porque acordei fraco, querendo esmurrar a parede, me sentindo sozinho, e com medo. Todo o mundo tem esse direito, querida Emma. Tem dia que a tristeza vem como uma carroça e passa por cima da gente, nos deixando em pedaços. O que eu quero que você entenda, é que não precisa se envergonhar de estar sozinha nessa, você precisa fazer a sua vida valer a pena.
- Eu me sinto sozinha desde os meus 18 anos, Sr. Gerard. - eu disse cabisbaixa.
- Eu sei. Quer dizer, não sei não. Continua me falando - ele disse.
Eu ri mais uma vez de seus modos, ele era um senhor bem cômico.
- Mas eu nunca me senti tão mal em minha vida, como agora. Eu saí de um casamento abusivo, e mudei de estado, não tenho amigos nem família próximos a mim, moro com um cachorrinho de estimação em uma casa onde não conheço ninguém. Peguei o primeiro trabalho que consegui, e arrisquei viver uma vida totalmente diferente da que eu tinha.
- Isso foi um ato muito corajoso, Emma. Você deve se orgulhar de si mesma, bater no peito e dizer que está no melhor grupo de pessoas do mundo!
- Grupo? - eu disse, em dúvida.
- Sim, grupo. Há dois tipos de pessoas: as que vivem com intensidade e as que simplesmente vão levando. As primeiras são firmes consigo mesmas. Aproveitam as oportunidades. Nunca se sentem confortáveis por muito tempo. As últimas jogam com segurança, nunca se forçam, um ano se emenda no outro, porque os anos são na verdade a mesma coisa. Eu tenho muita dó de gente assim, e muito orgulho de você. O que vale a pena? Já se perguntou? Você fez o passo certo, saiu da mesmice, agora está sofrendo por estar sozinha, mas isso é uma consequência do ato de bravura que teve lá atrás.
Eu sorri grandemente. Ele se levantou e me deu um abraço, eu não pude conter lágrimas, quando ele me empurrou levemente:
- Não chore, Emma, você é uma mulher linda. Com uma história de vida mais linda ainda, você saiu da cidade, com o emprego perfeito, um casamento tóxico mas que poderia muito bem apenas ir empurrando com a barriga, largou amigos e familiares por não aguentar ver pessoas próximas julgando sua decisão corajosa, para vir parar na Carolina do Norte no fim do mundo, em um asilo com uns velhos rabugentos e um outro que fica saindo meia-noite pra cheirar maconha dizendo que foi ver a Lua. Eu te admiro, minha filha!
Eu ri. - Cheirar maconha? Está sabendo legal da modernidade!
Ele gargalhou. E eu me senti completa. Estava feliz, mesmo durante muito tempo sem conhecer esse sentimento. Eu me senti em casa, cuidada, por alguém que eu não sabia muito bem quem era.
Ele pulou para a porta rapidamente e me puxou na mesma velocidade, abrindo-a com delicadeza para não acordar ninguém.
- Vem comigo. - ele sorriu em sentir a brisa que vinha de fora, ao deixar apenas uma fresta aberta. Abriu-a totalmente e eu saí ao seu lado e ele se sentou na grama.
Se fosse eu de umas horas atrás já iria mandar ele tirar aquele traseiro da grama molhada para não ficar doente. Mas, em minha cabeça me veio a sua frase "O que vale a pena?" então fiquei quieta apenas o observando: Estava sentado com os olhos vidrados na Lua, e com as mãos no coração, repetindo "Rosie, você está aí?". Eu me emocionei naquela noite, eu tive um misto de sentimentos, na verdade. Era felicidade, amor e emoção misturados em um só.
Senti a brisa que vinha, e quando o vento soprava mais forte, Gerard dizia ainda mais o nome da sua falecida esposa. "Eu também te amo", ele repetia. Gerard estava absurdamente emocionado, e soltava risos descontrolados quando o vento soprava ainda mais forte, foi a cena mais linda que eu vi em toda a minha vida. Eu tinha toda a certeza do mundo que ela estava exatamente ali com ele, retomando aquela cena dos dois minutos antes do casamento.
Eu me senti em paz. Eu não estava sozinha. E aqui poderia não ser o emprego perfeito, mas foi onde eu me descobri, onde eu aprendi que nunca devemos nos permitir a achar que somos sozinhos. Pois não somos. Valeu a pena todo sofrimento? Com certeza sim, vale a pena cada noite que eu me deito sobre a cama e o meu cachorrinho vem me dar carinho com lambidinhas no rosto, vale a pena todos os dias quando eu venho para cá e aprendo com pessoas sábias. Não foi fácil, e não está sendo. Mas não precisa ser cruel. E isso depende apenas de nós mesmos."Faça valer a pena. Viva como se um dia você fosse ficar velho(a), olhando para tudo o que fez. E tudo o que você não fez, é que vai incomodá-lo(a). "
- Gerard Hildels.
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Devaneios entre linhas (PRÉVIA)
NouvellesSabe quando você lê um livro/texto e pensa: "Meu Deus, isso me descreve!" e passa a ser inspirado(a) por aquilo que acabou de ler? Ou quando, você é motivado(a) a acreditar nos sonhos, nos seus princípios, em sua crença, na forma como vive, nos seus...