Um por duas

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   Ainda muito criança, ouvia histórias contadas pela minha mãe sobre fadas, anjos, demônios, lobisomens e muito outros seres sobrenaturais que talvez você nem imagine que exista, nem eu imaginava. Todas as noites, antes de dormir minha mãe se deitava ao meu lado na cama e contava histórias que ela mesmo inventava na hora, de caçadores que davam suas vidas para garantir que outras pessoas vivessem, entrando no mundo sobrenatural para tentar deixar o mundo um pouquinho melhor a cada dia, tentando extinguir o mal do planeta.
  Morávamos em uma casa afastada da cidade em uma pequena vila com alguns moradores, a maioria eram idosos, quase não haviam outras crianças para que eu pudesse brincar. Nossa vila se localizava perto de uma floresta, e nela havia uma cachoeira onde as poucas crianças que moravam lá costumavam se reunir e brincar.
  Certa tarde, ao chegar em casa após mais uma ida a floresta, encontrei minha mãe sentada em uma das cadeiras da cozinha, com uma expressão de preocupação no rosto.         Ela estava lendo uma carta, e quando viu que eu havia chegado enfiou a carta nos bolsos do vestido sem se preocupar que tivesse amassado o papel.
-Mamãe, está tudo bem?
Falei olhando fixamente para seus olhos, eram verdes meio azulados como o mar a única coisa que havia herdado da sua beleza única. Fomos na praia uma única vez e ao ver o mar com meus olhinhos pude notar a semelhança. No meu aniversário de 5 anos ela decidiu que deveríamos sair daquele lugar um pouco e me levou a praia, foi um dos dias mais bonitos que já vivi.
-Nada, meu amor. Nada que você deva se preocupar.
  Sua resposta foi dada de forma doce, como se não houvesse problemas no mundo. Era assim que me sentia perto da minha mãe, segura.
  Dei alguns passos em sua direção e sentei em seu colo. Automaticamente suas mãos vieram aos meus cabelos  escuros como um cafuné. Não pude evitar que um sorriso escapasse da minha boca. Encostei minha cabeça em seu ombro sentindo seu perfume, e logo as palavras saltaram da minha boca.
-Você recebeu uma carta do papai?
  Pude sentir o desconforto em seu corpo. Ela logo me tirou do seu colo ficando de pé, e por um segundo achei que fosse receber uma bronca por me meter em assuntos que não eram da minha conta, mas o contrário do que eu pensei, ela se ajoelhou, ficando do meu tamanho e respondeu:
-Sim, Aurora
-Ele vai me ver?
-Nós já conversamos sobre isso, ele não pode te ver porque é...
-É perigoso.
  Disse interrompendo a fala da minha mãe. Era notável que eu estava ficando irritada.
-Todas as crianças da vila tem um pai, só eu que não
-Filha, você tem...
  Antes que sua frase fosse terminada eu já havia saído da cozinha, era incrível como esse assunto pudesse me chatear em questão de segundos. Subi para o meu quarto batendo os pés com força no chão. Minha mãe subiu atrás de mim, e ao chegar no meu quarto. Olhei para ela com os olhos em lágrimas e logo ela entendeu o que deveria fazer. Fui puxada para um abraço e alguns segundos depois estávamos deitadas em minha cama.
-Minha gravidez foi o presente mais bonito que já ganhei da vida, e pude ver no seu pai o homem mais feliz do mundo
-E-então por que ele não me quis? -falo entre soluços-
-Ele te quis, te quis tanto que não conseguiria te perder. Aurora, seu pai trabalhava com algo perigoso demais para cogitar a possibilidade de ter por perto, ele não queria te machucar.
  Já havia ouvido isso muitas outras vezes, e sempre acabava ficando calma. Deixei que ela envolvesse seus braços no meu corpo em um abraço apertado e logo já estávamos rindo, minha mãe estava contando histórias que havia vivido com meu pai, e como havia conhecido ele. Eu quase pude sentir que essa era a última vez.

-Okay, estamos quase na hora de dormir.
  Ouvi ao conseguir me recuperar da crise de risos que ela havia me provocado. Levantei da cama rápido e fui até o armário pegar meu pijama.
-Vou preparar algo para comer enquanto a senhorita se banha...
  Assenti que sim com a cabeça e fui até o banheiro. Após meu banho, comemos e fui direto para a cama, recebi meu beijo de boa noite e em poucos minutos eu já estava dormindo.
  Levantei da cama no meio da noite e olhei pela janela, havia um brilho estranho na lua.
"Por favor"
  Ouvi as palavras anteriores em um sussurro baixo que vinha da cozinha, antes que eu pudesse descer para ver quem estava lá, fui acordada pela minha mãe, havia sido um sonho.
-Venha, precisamos sair daqui
  Ouvi sua voz antes que pudesse abrir os olhos, e ela repetiu a frase:
-Aurora, precisamos sair daqui agora!
Sentei na cama ainda desnorteada e vi ela tirando algumas roupas do meu armário e colocando em uma mochila.
-Por que?
-Não há tempo para explicação
  Não sentia a mínima vontade de sair do local, eu morava ali desde que nasci.
-Eu não quero ir
-Cale a boca e ande logo, vamos sair daqui agora.
  Sua voz saiu alta e autoritária e eu levantei da cama no mesmo instante.
Minha mãe era a mulher mais bonita e corajosa da vila, mas podia ser muito brava quando quisesse. Nunca entendi a fixação dos homens por mulheres indefesas, "princesas", mulheres que eles pudessem salvar, ela era o contrário disso, podia se salvar, e era como se me salvasse todos os dias.
-Desculpe, mamãe
  Tirei o pijama e me vesti com uma calça, uma camisa de manga comprida e um casaco. Em poucos minutos eu já estava vestida enquanto minha mãe havia ido ao seu quarto pegar sua mochila e seu casaco. Pude sentir que ela havia se arrependido de ter falado daquela forma comigo, mas não disse nada.
  Cada uma com sua mochila nas costas, foi assim que deixamos a vila. Alguns quilômetros depois de termos entrado avistamos um homem parado perto da cachoeira. Minha mãe parecia estar esperando por ele e sorriu ao ver que ele estava alí. Ela me puxou pelo braço e corremos até ele.
Enquanto nós duas corríamos pude ver uma lágrima saltando dos olhos da mulher, e ao notar nossa presença o rapaz correu ao nosso encontro também.
  Fui surpreendida com um abraço que envolvia nós duas, e logo o homem me levou ao colo.
-Você cresceu tanto desde a última vez que te vi, Aurora
  Suas bochechas encostaram nas minhas e logo pude adivinhar quem era o rapaz.
-August?
  Disse em um tom de pergunta e pude ver a confusão em seus olhos.
-Acho a palavra "papai" mais bonita..
  Não soube o que fazer, então abracei o rapaz encostando minha cabeça em seus ombros e pude sentir minha mãe atrás de mim abraçando o rapaz.
-Christina, vamos, logo ele estará aqui.
Não sabia de quem estava falando, mas vi que não queria descobri quando minha mãe se calou e começou a andar junto a nós dois. Ela era a pessoa que mais falava no mundo todo, mas não hoje. Só algo muito ruim deixaria minha mãe dessa forma.
  Andamos mais alguns quilômetros depois da cachoeira e meus pés já estavam inchados. Nenhuma palavra foi dita até eu começar a reclamar e os dois decidiram parar um pouco. Deitei no colo da minha mãe, o que parece que deixou o rapaz um pouco chateado, ele esperava que eu grudasse um pouco mais nele, o que era difícil já que eu não havia me acostumado ainda com a ideia de ter um pai.
  Após algumas horas dormindo, meus pais decidiram que era a hora de saírem dali. Enquanto estava com os olhos fechados pude ouvir uma conversa dos dois.
-August, como conseguiu se livrar da caça?
-Consegui uma nova identidade, meu amor.
-Eles não te seguirão?
  Meu pai não respondeu. Abri os olhos um pouquinho e vi que ele olhava para mim. Talvez estivesse pensando em outra coisa enquanto me olhava, pois não percebeu que eu havia aberto os olhos.
-Se vierem, darei minha vida por vocês duas.
  Senti carícias em minha bochecha e com o silêncio que surgiu acabei adormecendo novamente.

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