Caçadores

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Durante a noite não consegui dormir. Todas as vezes que fechava os olhos minha mente elaborava explicações para os desenhos e escrituras presentes da faca. Já tinha ouvido falar em armas assim, criadas para matar alguns seres em específicos, os mais difíceis de morrer, como era o caso dos demônios. Em todas as minhas caçadas eles eram exorcizados e voltavam ao inferno tento a possibilidade de retornar a terra algum dia. Levantei algumas vezes durante a madrugada e fiz pesquisas sobre o assunto em livros antigos e na internet mas resultados não foram muito satisfatórios, consegui achar pouquíssimas coisas, entre elas uma foto antiga das preciosas facas e a informação de que só haviam sido fabricadas 5 dessas no mundo todo. Talvez eu tivesse uma em minha posse por algum tempo, o que facilitaria muito as coisas.
Quando consegui dormir novamente a luz do sol já estava invadindo as pequenas frechas presentes na janela do meu quarto trazendo consigo o canto dos pássaros e aquele ar matutino, cobri o rosto com o lençol para proteger meus olhos cansados da luz e mesmo com aquele enorme tumulto do lado de fora da vida renascendo ao amanhecer, eu adormeci. Acordei atrasada para o trabalho e inventei uma desculpa boa o suficiente para poder ficar o resto do dia em casa, logo em seguida fui ao banheiro e notei um papel no chão, o endereço que o garoto tinha anotado no dia anterior, provavelmente havia caído da minha roupa no último banho. Eu tinha muitas perguntas a fazer ao Ezio, mas não achava seguro ir ao encontro de alguém que eu mal conhecia. Coloquei o papel em cima do balcão da pia junto as escovas de dentes e fui em direção ao box para tomar um banho. Assim que terminei de me arrumar pus meu diário com todas minhas anotações sobre espécies na mochila junto a um punhal com e uma faca presa a minha roupa e sai para ir ao encontro do garoto do dia anterior.
O endereço dado por Ezio me levou até um beco maltratado atrás de um prédio velho. Procurei entre as portas qual teria o número anotado e encontrei em uma portinha azul escuro que tinha como proteção uma grade coberta de poeira e grude com um cadeado. Levei minha mão até a campainha e antes que eu a tocasse pude notar lodo cobrindo a mesma, decidi então que bateria na porta. Dei algumas batidas e sem demora ouvi uma voz familiar, a voz que tinha ouvido no dia anterior na floresta.
-Quem é?
Disse Ezio ao abrir um tantinho da porta para bisbilhotar, deu para ver a luz do sol refletir na corrente da trava de segurança que a maioria das portas de apartamentos tinham.
-Sou eu, Kira.
A porta se abriu por completo e após abrir a grade fui puxada para dentro pelo braço, ele se virou rapidamente para fechar a porta e tudo ficou escuro. A sala tinha um cheiro de mofo e logo pude entender o motivo, ouvi barulhos de várias pingueiras pelo local. Minhas mãos começaram a soar e tateei minha calça em busca de alguma arma que eu pudesse usar.
-Acenda a luz
Disse de forma firme e pude sentir suas mãos pousando um pouco acima da minha cintura, aquilo havia sido feito de forma que eu fosse guiada e não tropeçasse.
-Não temos luz nesse cômodo
-"Temos"? Tem mais gente conosco?
Não obtive resposta para a pergunta, apenas senti um pequeno empurrão para que eu andasse. Cada segundo que passava me arrependia de ter vindo.
-É por aqui...
Com um punhal na mão dei alguns passos para frente seguindo as palavras do garoto. Pude sentir uma das suas mãos afrouxando e uma frecha de luz surgiu e foi se expandindo revelando um novo cômodo, este totalmente iluminado. Segui o caminho indicado pelo garoto e em seguida ele fechou a porta novamente. Havia uma sala com alguns alvos para dardos nas paredes e um outro garoto um pouco mais velho que eu, deitado em um sofá rasgado com posters de Star Wars presos a cima do móvel.
-Esse é o Victor, está no dia de descanso.
Acenei para o Victor ao passar por ele e sua mão se mexeu alguns milímetros em uma tentativa de retribuir o acento. Encarei ele por alguns segundos enquanto andava e em seguida entrei no corredor escondido ao lado de uma estante com alguns livros e flores feias, no fim havia uma sala bem ampla com várias portas e muitas pessoas, a maioria homens entre 25 e 40 anos, todos com os corpos bem definidos e cabelos bem curtos.
-Quem são esses?
Disse ao pé do ouvido do garoto ainda observando as pessoas na sala.
-Minha família.
Respondeu no mesmo tom que o meu parando próxima a uma portinha vermelha com maçaneta dourada. Ele colocou a mão sobre a maçaneta e olhou para mim fixamente, seus olhos eram tão azuis que podia jurar que talvez tivesse visto algumas gaivotas voando entre as nuvens em sua íris.
-Bem, vou lhe apresentar um amigo.
Fiz que sim com a cabeça e guardei o punhal em minha cintura novamente, notei que Ezio estava ansioso. Ele abriu a porta e entrou fazendo com que eu seguisse seus passos. A sala era toda vermelha com estantes de livros e armários, havia também uma escrivaninha com um computador e uma poltrona logo a frente de um sofá onde estava sentado um senhor. O homem parecia ter entre 35 e 40 anos pelo seu físico, mas suas rugas no rosto e cabelos muito brancos entregavam que talvez ele fosse mais velho. Ezio sentou no sofá junto ao rapaz e eu sentei na poltrona um pouco desconfortável e em silêncio esperando que alguém falasse algo. A sala tinha um quadro com um mapa e vários pontos vermelhos nele, além de vários jornais espalhados pelo local e livros abertos, o garoto ao perceber minha curiosidade pelo local se ajeitou no sofá e disse:
-Senhor, esta é a Kira
O rapaz me analisou por um tempo e em seguida estendeu a mão.
-Kira, este é o Richard, o líder do grupo de caçadores.
Estendi a mão para Richard e ao ouvir a frase por completo não pude disfarçar minha surpresa.
-Grupo de caçadores?
-Ezio, não disse que ela era uma de nós?
Perguntou o senhor levantando rapidamente do sofá ajeitando o casaco jeans que estava usando por cima de uma camiseta camuflada.
-Ela é, deixe que lhe mostre a...
-Não me parece uma caçadora! Onde estão todos os músculos e tatuagens?!
Ele olhou por um segundo para Ezio vendo que tinha feito um comentário precipitado e se calou, virando novamente para mim.
-Desde quando caçadores precisam de músculos e tatuagens?
Respondi em protesto pela sua falta de sensibilidade e educação, não era apenas os músculos que contavam em campo, e sim seus conhecimentos e agilidade.
-Não vou me responsabilizar por mais uma criança aqui, isso não é um orfanato
Vejo ele se virando e indo em direção a porta.
-Garota, volte para casa e pare de tentar bancar a super heroína, esqueça essa coisa toda de caça, deixe isso para os adultos
Eu tinha capacidade de caçar tanto quando ele, já havia feito isso algumas vezes. Fui em direção a ele e segurei em seu ombro fazendo com que ele olhasse para mim. Seus olhos eram castanhos escuros com olheiras profundas revelando cansaço e sua expressão era difícil de ser decifrada. Respirei fundo antes que começasse a falar tentando não gaguejar.
-Nunca te pedi favor algum, e se pensa que pode simplesmente falar assim comigo está muito enganado!
-O seu lugar não é aqui.
Dei um soco em seu nariz e outros caçadores vieram até o local, eu estava ficando realmente brava, ao vê-lo levantar o rosto novamente percebi que estava sangrando, ele deu um sorriso para mim sem mover seu corpo como se estivesse satisfeito, talvez esperasse exatamente essa reação, foi até a escrivaninha e pegou seu charuto, sem demorar muito a tirar um isqueiro de dentro do casaco. Os homens permaneceram parados na porta. Richard olhou para o lado onde estava Ezio totalmente paralisado com a cena e foi até a porta.
-Ezio, não faça eu me arrepender disso.
Sua voz pareceu um tanto brava e ele sumiu batendo a porta. Não entendi o que ele quis dizer com aquilo na hora, mas pareceu que eu teria uma chance para provar que eu merecia um lugar alí ao lado de outros caçadores.
-Bem, ao menos conseguimos
-Conseguimos?
Olhei para Ezio furiosa e embora quisesse não conseguia dizer mais nada, eu acabaria batendo nele também. Saímos da sala e fui apresentada ao resto do local, não havia muitas coisas além daquilo, apenas alguns dormitórios com vários beliches espalhados e um local apropriado para cozinhar e comer. Ezio me explicou tentando ser gentil que aquele prédio servia exclusivamente para que descansassem, e o treino era feito em outro lugar. Notei que ele estava tentando se desculpar puxando assunto sobre o local, mas não dei muita importância.
-Kira
-Estou escutando -Falei fingindo estar ocupada demais olhando o local para lhe dar atenção.
-Você está com minha faca, não está?
-Do que está falando?
Meus olhos se voltaram a ele.
-Eu sei que está com você, não posso perde-la
A faca com certeza estava melhor guardada comigo, se eu consegui pegar qualquer outra pessoa conseguiria também.
-Ela será mais útil em minhas mãos, você vai acabar perdendo.
-Você não entende, ela era do meu pai, algo bem antigo e poderoso
-Eu lhe devolverei, só preciso fazer algo.
Encerrei o assunto aí, embora ele tivesse protestado mais algumas vezes pedindo a sua arma de volta, eu não havia roubado, tinha pegado emprestado e devolveria assim que possível.

As coisas pareciam estar dando certo para mim ao menos uma vez na vida desde a morte dos meus pais, não precisei pensar muito para convencer que faria o possível para permanecer aqui. Mesmo sem demonstrar a Ezio todo aquele ambiente havia me empolgado, eu me sentia em casa novamente e estaria aqui, preparada para quando os monstros voltassem.

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