Anoitecia em Cambridge. Era verão e apesar dos dias serem claros por mais tempo, moças direitas não perambulavam pelas ruas quando o crepúsculo surgia, tampouco permaneciam acordadas quando as estrelas surgiam no céu. Por isso ela estava ali, sentada de frente para sua penteadeira, encarando seu próprio reflexo e o de sua dama de companhia que lhe penteava os cabelos antes de ir se deitar.
Ela não estava feliz. Seu olhar estava distante, sem qualquer brilho em seus olhos esverdeados e os lábios retorcidos para baixo como quem não está disposta a sorrir nem pela mais espirituosa das brincadeiras. Sua dama, que vez ou outra lançava breves olhares para seu reflexo, após ouvir seu suspiro pesado e triste, ousou lhe perguntar:
— Algo te aflige, minha senhora?
Lagrimejou ao ouvir a pergunta, qualquer resposta que pensasse seria dolorosa de verbalizar. Afinal nem ela sabia onde começava sua aflição e tinha um medo mortal de saber do onde terminaria.
— Não, eu estou bem. Talvez um pouco cansada, do longo dia. — limitou-se com a clássica mentira, crendo que assim seria deixada em seus devaneios.
Porém ela havia esquecido do espinho que era sua dama de companhia. Não tinha um coração maldoso, seu problema, no entanto era o de ser atrevida, petulante, ousada. Era como se nada pudesse escapar de sua perspicácia e dificilmente, quando algo lhe instigava sua curiosidade, guardava para si um comentário ácido ou pergunta desconcertante. Assim não foi surpresa quando o silêncio do quarto fora maculado pela voz da dama ao falar:
— Pensei que em sua religião a mentira condenasse ao fogo do inferno.
Só o som daquela palavra causava arrepios na jovem que, constrangida, ergueu os olhos e fitou sua dama, confirmando o sorriso ardiloso que desenhava seu rosto.
— Não diga essa palavra. — Censurou e quando os olhos azuis de dama encontraram os seus, ela desviou para sua caixinha de joias sobre a penteadeira. - Sabe que não gosto.
A dama sorriu de canto e arqueou uma sobrancelha, sempre provocante:
— É só uma palavra, minha senhora. — Insistiu a dama indiferente ao passo que com muita delicadeza passava a escova nos cabelos ondulados e castanhos de sua senhora. — Por que temer uma simples palavra?
— Eu não disse que temo.
— Pode não ter dito com palavras, mas o arrepio de sua pele te denunciou. — retrucou apontando com os olhos para os braços desnudos da moça, onde a pouco estava a pele eriçada. — E pelo tanto que minha senhora tem mentido, creio que seu medo seja válido.
Ela segurou as próprias mãos, mantendo-se ponderada como toda boa moça deve ser embora sua vontade real fosse outra.
— Apenas... — hesitou — Não diga esta palavra.
Sentiu aquele olhar sobre si. Um olhar que fazia seu corpo incendiar de dentro para fora, que a constrangia e ao mesmo tempo atraía, provocava. Ela segurou as mãos com mais força e não tirou os olhos da caixinha de joias, mesmo quando, pela visão periférica, percebeu a inclinação de sua dama de companhia que afastou delicadamente seus volumosos cabelos recém escovados e até se aproximar de sua orelha e, pelo que há de mais sagrado, fazê-la sentir aqueles os lábios finos tocarem a sua pele:
— Por que deveria temer o inferno, minha senhora? — ela sussurrou provocante. — Acaso tendes feito algo que mereça tamanha condenação?
Ela fechou os olhos e inconscientemente inclinou a cabeça, deixando o pescoço exposto à outra. Por todo seu corpo se espalhou um arrepio intenso e ela sentiu aquele calor que jamais havia sentido até surgir aquela dama em sua vida. Suspirou, contendo todos os seus desejos em uma mordida nos lábios.
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Ready to Run
FanfictionNa Inglaterra do século XVI, Harriet era apenas uma menina quando foi dada por seu pai em casamento para um duque britânico muito mais velho. A moça extremamente religiosa tem todas as suas crenças e costumes confrontados quando a audaciosa e atrevi...