Ready to Run

There's a devil in your smile

A liberdade sempre fora cerceada de Harriet. Parte de sua existência viveu em ambiente rural, quando seu pai era servo em um feudo ao norte do país; um dos poucos que se manteve com relativa prosperidade em pleno século XVII. Sua única irmã aos treze anos fora dada em casamento para o filho caçula do senhor daquelas terras - tratava-se de um rapaz quinze anos mais velho e nascido com uma paralisia cerebral que o deixou aleijado e com a mentalidade de um pequeno com não mais que quatro anos de idade.

Tal arranjo significou uma boca a menos para alimentar, a esperança de que conseguiria subir do posto de servo para vassalo, conquistar certos privilégios e poderes, além de livrar o ambicioso patriarca da família Styles de pagar o dote de sua filha. Para o senhor feudal também houve benefícios, uma vez que seu filho não serviria para torna-se soldado nem tampouco membro do clero, unir-se com uma moça de boa aparência melhoraria a imagem do senhor do feito diante da sociedade, além de tirar das costas o peso de cuidar de um inválido.

Porém as esperanças de Desmond foram arruinadas. As promessas de uma promoção foram quebradas no instante em que o casamento fora consumado. Harriet viu o momento em que o senhor feudal zombou de seu pai com um riso mal-humorado dizendo que o servo deveria considerar uma grande benção que tenha conseguido um bom casamento para sua filha, ao invés de delirar com ideias de ascensão social. Acrescentou ainda que não havia nada que o servo pudesse fazer para protestar contra, a menos que desejasse passar um tempo na berlinda em praça pública debaixo de sol.

Naquele dia Harriet e sua mãe foram vítimas de ira de seu pai que embriagado pelo vinho perdeu o controle e descontou todas as suas frustrações nas mulheres da casa. O homem vivia sempre frustrado e culpava a mulher por não lhe dar um filho varão, os poucos que conseguiram nascer sequer atingiram a idade de aprender a andar - faleciam devido a uma febre alta, gripe, peste ou logo ao nascer. Assim, junto com as lições de bordado, cozinha e etiqueta, Harriet aprendeu qual seria seu lugar como mulher; sem jamais questionar nada.

Durante algum tempo, ainda que de longe, Harriet observava o infortúnio de sua irmã e ficava dividida entre a piedade e o medo. Medo de ter o mesmo destino, de que seu pai lhe entregasse para qualquer homem, a fim de livrar-se de mais uma mulher que só lhe trazia gastos e desgosto.

O que ninguém sabia de fato, era que aquelas terras estavam com os dias contados e o Senhor Feudal, que com punhos de ferro conseguiu manter os domínios de sua família, via todo seu império entrar em ruínas durante a Revolução Inglesa. Indignados com a tirania do aumento dos impostos e serviços para compensar as perdas, servos e vassalos organizaram uma rebelião, saques aos celeiros, destruição de instrumentos de tortura e punição e roubos de objetos de valor na Igreja tornaram-se frequentes e era apenas uma questão de tempo para estourar uma revolta armada.

Os mais covardes ou tementes a fé cristã, simplesmente abandonaram a vida rural a fim de tentar a sorte na promissora vida nos povoados burgueses e outros se aventuraram para uma viagem sem volta ao Novo Mundo. A família Styles foi uma das que não desejou ficar para ver como terminaria aquele pandemônio. Desmond juntou tudo que tinha em uma carroça puxada por cavalo velho e fraco levando consigo sua mulher e filha com destino a Cambridge, o povoado mais próximo. Muito do que levou, incluindo a carroça além de alimentos e bebidas, ele havia roubado sem qualquer peso na consciência durante a calada da noite.

Horas antes de partirem, ouviu-se mexericos dizendo que Gemma, a irmã mais velha de Harriet, fora encontrada morta em seu quarto pendurada por uma corda em seu pescoço. A notícia partiu o coração da irmã mais nova, pois eram muito unidas desde que se entendia por gente e sequer teve chances de ver o corpo para dizer um último adeus, chorar por ela, dizer que sentia muito e que lamentava imensamente toda desgraça que lhe fora imposta.