O despertar definitivo se deu depois de dias entre a consciência e o torpor das drogas que o pajé ministrava para aliviar a dor e a infecção. A menina despertou durante a madrugada inquieta. Sentia como se algo lhe faltasse, algo que realmente fosse importante para ela e então saiu da maloca, ao relento. Não que o frio a incomodasse, pelo contrário, era aconchegante.
Decidida a descobrir o que a despertara caminhou rumo à intersecção da aldeia e, exatamente nesse ponto, vultos surgiram. Espíritos que não quiseram ou não puderam seguir seu rumo, mas que ficaram presos a uma missão, a uma empreitada. A índia contemplou, pasma e em assombro e, ainda assim, maravilhada. Conseguia vê-los e sentir suas essências. O que os perturbava. Mesmo assim, ela se extasiava com a visão. Alguns dançavam sob o luar pálido nas copas das árvores, outros conversavam melancolicamente.
Tentou conversar com alguns, sem sucesso. Até chegou a atirar pedrinhas em um índio mais velho sentado embaixo de uma árvore. Este desdenhou da ação quase desesperada da garota. Não fazia mal, quando o sol nascesse falaria com o pajé e este lhe explicaria o que estava acontecendo com ela. Ele sempre parecia saber de tudo. O que não aconteceu. Quando acordou, seu avô a levou para que aprendesse a pescar e ser útil para todos. Por um novo medo, Aruana não mencionou os espíritos errantes. Não sabia o que poderia lhe acontecer já que o velho se ressentia com a filha por ter adotado uma desconhecida.
Longe da margem, a menina pôde ver um homem sorridente em uma canoa próxima a sua. Seu avô a olhou desconfiado, mas desdenhou em seguida. Sempre a julgara louca e esquisita, não fazia questão de prestar atenção na menina e só estava ali por não poder mais pescar por conta própria, já não tinha força nas mãos e os seus verdadeiros netos tinham outras coisas a fazer.
— Ocê viu? — a índia tentou meio tímida.
— Vi o quê menina? Tá louca? Fica falando sozinha aí, daqui a pouco se joga no rio e morre afogada. Num faria farta — o homem riu.
— Bem, sei disso. Mar ocê num vê nada, então tenho que mostrar.
— Mostrar que nada. Fica aí se fazendo de boazinha. Vai saber porque te jogaram fora. Boa coisa ocê num é.
— Mar ocê num tá vendo o bar...
A pequena índia olhava para o avô e apontava para o barco em seguida, talvez esperando que o senhor visse o tal barco e acreditasse na menina. O homem não parecia fazer questão e aproveitou um momento de distração da india para empurra-la da canoa pegando o remo para evitar ser surpreendido.
A menina ouviu os sons ficarem opacos e começou a se debater para submergir até sentir uma pancada na cabeça e perder as forças. Estava afundando no rio. Estava morrendo no rio. Respire. Respire. Respirar? A indiazinha inalou, e a primeira sensação foi de queimação, depois um alívio por estar respirando. Estaria mesmo ou seria um delírio? Abriu os olhos e pôde ver que estava submersa, estava respirando debaixo d'água. Como? Não saberia dizer, apenas estava e era maravilhoso.
Emergiu a sua pequena cabeça a fim de contemplar a aldeia, mas se deparou com índios lamentosos e um choro sofrido que parecia reverberar por todo o Tocantins. Uma dor que poderia ser sentida em todas as almas. Uma mãe perdera um filho. Quem era a mãe e quem era o filho? Curiosa a menina nadou para a margem calmamente. Teve um assombro quando pode ver mãe Guacira aos prantos e o pajé a consolando, eles estavam no meio da aldeia.
Aruana saiu da água e caminhou hesitante na direção da mãe adotiva. Certamente Ibira não resistiu ao ferimento do treinamento para caçador. Só poderia ser isso, não tinha ficado tanto tempo na água. Olhou para o céu e pode ver o sol começar a se pôr, mas como? Voltou o seu olhar para os índios que agora a fitavam incrédulos. Ela tinha ficado morta no fim.
Descompassadamente foi em direção a sua família que recuou a primeira vista. Mãe Guacira parara de chorar e parecia não saber mais como reagir. Diga-se o mesmo de todos na aldeia. Uma menina dada como morta surgiu das águas como se nada tivesse acontecido. Ou teria acontecido? A menina parou em frente a sua mãe e ao pajé, ambos sem fala.
— Quanto tempo? — sua voz falhou.
— Quase dois dias, endi.— disse por fim o pajé em um meio sorriso.
A menina recuou e correu para a mata. Estava morta então. Morta novamente. Quantas vezes mais morreria? Por quê? Correu até parar em frente a nascente e chorou. Um choro mais penetrante que o de sua mãe. Um chorar mais sofrido e mais desesperado do que ouvira na aldeia. Aruana morreu e aquela índia de sete anos na nascente chorava por ela. Chorava pela menina que não poderia ser pois esta morreu afogada. Por quê? Por quê?
E, assim como tudo vem, o sono a pegou e a menina dormiu ali, ao relento, sob o luar, a pele morena ainda fria pela contato com a água do rio. A menina dormiu sob o tranquilo olhar de Mãe-Iara. Sua filha finalmente havia nascido. Uma sereia na terra. A menina despertou sob o olhar de uma mulher de pele parda, longos cabelos negros e escamas. Sim, escamas. Esta estava sentada na margem e acariciava os cabelos da indiazinha.
— Que bom que acordou, aiyra. Tem fome? — sua voz era macia e a delicadeza dos gestos conquistaram Aruana.
— Tenho, sim — a menina se sentou sem tirar os olhos da mulher de escamas que lhe oferecia frutas. — Quem é ocê?
— Meu nome é Iara. A sereia. Sei que sabe disso, é muito esperta. Vim lhe socorrer, minha menina.
— Iara? Mar eu num sô menino pra tu arrastar pras águas.
— Num carece disso. Eu vim aqui porque ocê precisa deu. Então tô aqui
— Pra me ajudar? Quem eu sou?— Ocê é Amana e é minha filha. Minha aiyra. E eu tô aqui pro que ocê precisar.
— O que eu sou?
— Ocê é muitas coisas aiyra, mar agora ocê é só uma menina que carece de respostas. E eu vou dar, no tempo certo.
— Tempo ao tempo?— Tempo ao tempo.
A mulher saiu das águas e sua cauda se dividiu dando lugar a duas pernas torneadas pelas águas. Segurou a mão da menina que agora sorria. Teria respostas, mesmo que demorasse. Finalmente teria respostas.
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Universo Zero: Amana - Filha de Iara #1
Fantasía"Todos nascemos, crescemos, vivemos da melhor forma possível e depois morremos. Comigo foi diferente. Eu nasci, morri, renasci e cresci para viver, não para mim, não da melhor forma possível... Descobrir quem sou pode chocar algumas pessoas, mas f...