Aprendendo a Amar

49 17 0
                                    


No início, era muito difícil. Complicado, eu diria. Não que eu não gostasse do lugar que o pajé Enaré havia me dado. Talvez fosse só medo de ser descoberta. Mãe Guacira era muito desconfiada e sempre descobria quando estavam escondendo alguma coisa dela. Lembro dessa época porque era o início do meu verdadeiro treinamento, das minhas primeiras descobertas acerca de quem eu era e do ser maravilhoso que o pajé via em mim. Não queria decepcionar ninguém, ou não fazer valer a confiança que eles me depositavam, mesmo que inconscientes disso.

Os pesadelos não acabaram assim, do nada. Eu acabava por ir todo dia à nascente, nem que fosse apenas para mergulhar os pés dentro d'água. Mesmo que fosse apenas para passar o tempo em reflexões profundas sobre o que fazer hoje, agora e amanhã. Fiquei uma semana inteira sem me dar conta do tempo que perdia em devaneios. Sem perceber que não melhorava em nada e que isso não agradaria o pajé. Eu só queria entender como ser a melhor entre os melhores. Eles tinham força e habilidades na caça e pesca tanto quanto no manuseio das armas mais simples e eu era só uma menina que foi resgatada na beira de um rio com os pés sangrando.

Tentei me concentrar nos olhos que vira no rio. Nos olhos que me assombravam desde então. Nos olhos que para mim significavam a pura maldade encarnada. Mas eles vinham quando queriam e isso era um alerta sobre a proximidade do feiticeiro. Eu podia sentir sua energia fria, vingativa e maligna quando não estava na clareira ou tomando banho no rio. Aqui eu estava segura, mas sair parecia um sacrilégio. Acabava que eu caía em meio as árvores ou me perdia na mata sempre que via os olhos. Não contava a ninguém sobre, mas sentia que Lau sabia que eu escondia algo, ainda que não me importunasse para saber o que era.

Por puro medo, nunca voltava tarde para a aldeia. As sombras pareciam querer me pegar e, por isso, sempre observava o andar do sol. Mas por andar me perdendo em reflexões tolas, neste dia, não vi o sol começar a se por e o medo se apoderou de mim. Não queria gritar por receio de que o mal viesse me pegar. Calada, comecei a fazer a trilha de volta pela mata cerrada. Eram nessas horas que os olhos pareciam me devorar e, talvez por isso, eu tenha baixado a guarda e sempre me arrependo por isso. Ou talvez não, talvez se aquilo não tivesse acontecido, eu não seria quem sou hoje.

O medo. Sempre o medo. Ele nos faz ver as coisas mais assustadoras e temerosas, mas hoje vejo com clareza e posso entender as sombras na mata, o farfalhar das folhas das árvores, o canto melancólico dos pássaros. E então eu o vi. Alto, negro e imponente com os seus olhos que me perseguiam há anos. Ele usava uma túnica cerimonial e um colar de ossos. Na sua mão estava um cajado realmente bonito, mas aquele olhar me fazia gelar e eu estaquei na trilha.

— Araíba, num sabe o prazer que me dá em ver como cresceu. Sinto-me enganado. Ora, menina, num sabe falar? Por acaso o gato comeu a sua língua? Porque senão, a onça vai.

Foi aí que uma onça o atravessou, pronta para me devorar. Era questão de segundos para não sobrar nem um tiquinho de mim para contar a história. Nadica de nada. Por segundos não fui devorada, não tinha pensado, apenas me joguei na mata onde um galho pontiagudo entrou no meu braço. Micos pulavam afoitos e eu saltei para a árvore na qual eles estavam, não tinha reparado nos olhos deles que assumiram um tom esverdeado. Não teria tempo para pensar, já que a onça arranhava a árvore almejando o seu tão precioso alvo cheio de carne.

O meu braço sangrava, um fio de sangue empapava a minha mão e a deixava escorregadia e a onça não parecia querer desistir do presente. Eram segundos até atingir a inconsciência e acabar parando na barriga do felino. Segundos. Segundos. Oh, arrependimento de não ter comido nada o dia inteiro. Segundos. Agarrei um cipó e dei várias voltas na minha cintura pequena e outro onde amarrei a haste da madeira no meu braço. Fiz mira e não conseguia lançar por causa da visão a embaçar.

Segundos, apenas isso e tudo estaria terminado. Ele me mataria de um jeito ou de outro, então porque não entregar os pontos?

Pela minha família... ele não pararia comigo. Sabia disso e, por isso, juntei toda a minha pouca força para jogar o galho que se enterrou na cabeça do animal. Eu quase tombei da árvore no processo e, se não fosse o cipó, certamente eu estaria morta ao lado da onça. Não sei de onde tirei forças para continuar o caminho para a aldeia sob as árvores. Devagar e com os olhos lacrimejando, a boca seca e o braço dormente. Finalmente o lar.

Desci da árvore sob os olhares nervosos e horrorizados da aldeia. Olhos que se afastam juntamente com o corpo. Deram passagem para o pajé passar e me dirigir um olhar mais solícito do que os outros.

— Ela ou eu...

Vi coisas difusas, sonhos que se mostravam pior do que a realidade e que no fim me faziam abrir os olhos, girá-los e tornar a fechá-los, para mais uma série de tormenta em forma de sonhos. Onde só se podia identificar um par de olhos que logo se transformavam em dentes prontos para me mastigar. Sonhos ou pesadelos de uma indiazinha de apenas sete anos que sobreviveu a um ataque direto de Magé, aquele que se dizia filho de Ticê e Anhangá. 

Universo Zero: Amana - Filha de Iara #1Onde histórias criam vida. Descubra agora