Efeitos Colaterais

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Durante os primeiros dias ao lado daquela que se dizia sua mãe e sob seu novo nome, a índia evitou contato direto com sua antiga aldeia. Evitou contato com sua melhor amiga e a única que tinha. Sob recomendação de Iara, que parecia visitá-la apenas em sonhos, Amana passou a meditar e a gastar sua energia sobressalente com atividades simples como subir em árvores e derrubar mangas com estilingues artesanais . Não se incomodava com a solidão e o silêncio, até percebeu que captava melhor os sons e que eram mais nítidos com um pouco de concentração.

A sereia lhe contava histórias e sussurrava ao seu ouvido. Atiçava-a a explorar o máximo de si. Em troca, a índia se divertia com as lições que lhe eram passadas por sonhos. Era algo só delas. Como um segredo. Pajé até a visitou algumas vezes, trouxe livros de magia consigo e Amana devorava-os em pouco tempo e depois praticava os feitiços. Tinha certa habilidade com os feitiços naturais. Sua irmã sempre lhe trazia uma cesta de comida ao meio dia. Comida para a noite e a manhã seguinte, até a hora do almoço em que traria outra cesta de capim dourado abarrotada de comida.

Não lhe faltava nada. Não tinha nada do que reclamar e por assim se seguiram as horas, os dias, as semanas e os meses até se dar conta de que se passaram anos treinando, praticando, caçando, lendo e meditando. Sempre sob as implicâncias de Ibira, irmão de Lau e seu irmão de criação. Por anos. Por muitas vezes Amana sentia a energia negra de seu algoz. Conseguia ouvir sua respiração sob a vegetação e até chegaram a ver seus tenebrosos olhos. Iara a consolava, procurava animar a garota dizendo-lhe que já estava quase pronta para libertar seu povo das mãos de Magé.

Liberdade. Liberdade para ser quem era. Seu maior desejo até então. Meditava sobre seu futuro. Treinava para torná-lo real e palpável. Seria sua vez. Era uma luta de deuses, sabia e compreendia que era sua missão acabar com a maldade do filho do deus do submundo. E ela era filha da rainhas águas e honraria seu sangue. Sua empreitada. Liberdade. Liberdade. Liberdade.

Mantinha-se zen a maior parte do tempo, porém era inevitável não se irritar com Ibira. Não conseguia sequer raciocinar direito quando este estava presente. No início tentou ser amiga do índio, não suportou o egocentrismo e ele passou a implicar diariamente com a menina. Não a deixava meditar. Tal dia ele atirou um de seus punhais em direção a garota, que o parou no ar sob um de seus feixes de luz. Habilidade que Mãe-Iara chamava de Lux.

— Ora, Ibira. Quando vai crescer? —a garota se pôs de frente ao rapaz que pegava o punhal no ar.

— Não seja chata. Sabe que é divertido te perturbar. Pelo menos pra mim.

— Nem vem. Ocê já ta passando dos limites.

— Nem vem... Haja graça, Amana. Num vou parar e só paro quando eu quiser.

Os pássaros alçam voo aflitos e desesperados. Amana pode sentir a energia maligna do feiticeiro, ao passo que sombras os rodearam deixando os irmãos no breu por dois segundos. Logo Amana passou a emanar sua luz esverdeada em todas as direções.

— Trouxe companhia, Araíba? Está com medo?

— Num tenho medo d'ocê — rebateu tentando manter a voz firme.

— Deveria.

Sombras animais se projetam de todas as direções atacando os irmãos. Ibira usou seus punhais em um combate mais corpo a corpo. Amana projetava suas luzes como chicotes, golpeando os animais em formas de sombras que se dissolviam no ar. Ibira não parecia ter tanta sorte assim, pois já apresentava alguns arranhões. Amana não permitia maior aproximação dos bichos e por tal não estava machucada, e mesmo que estivesse se curaria rapidamente.

Tudo parecia se manter sob controle até que um feixe mais denso de luz negra atravessou as defesas de Amana e lhe trespassou, a sombra foi absorvida por Ibira que caiu em um urro desesperado. Em seguida, as sombras regrediram e Amana pode ver o irmão caído e aparentemente desacordado. Correu para acudir-lo.

— Ibira?

— Luzes, cauda e deuses...

—Ibira?— a garota o sacudia fervorosamente. — Seu Zé? Acorda.

— Amana, eu vi.

— Viu o quê?

— Vi pessoas como ocê. Vi muito poder Eu vi ocê de um jeito diferente. Tava mudada. Amana...

— Ih, tô achando que ocê pirou de vez. Melhor num contar pro pajé, ele pode ficar cismado. — A garota se levantou olhando ao redor. — Ele fugiu por culpa sua.

— Oxi, agora que eu vi mesmo. E eu la tenho culpa d'ocê ser azarada?— o rapaz se levantou em um salto assombrado.— Preciso falar com o pajé.

— Pra quê?

— Num é da sua conta.

O índio saiu em disparada, deixando a garota boquiaberta com a atitude racional do mesmo. Nunca perdia a oportunidade de irritar Amana, mesmo que para isso ficasse calado. Era o seu passatempo preferido e exatamente por isso a garota subiu na árvore mais próxima e passou a seguir Ibira por cima. Por onde poderia alcança-lo com maior facilidade pois era mais fascinante persegui-lo dessa forma Não precisou ir muito longe, encontrou o rapaz caído nas raízes de uma mangueira. Provavelmente bateu a cabeça e o pouco cérebro que tinha fugiu o mais rápido que pode.

Amana desceu da árvore reparando que a energia do rapaz mudava de forma significativa. Mãe-Iara havia lhe ensinado a reconhecer os diversos tipos de energia e, decididamente, Ibira já não era mais um humano comum e estava longe de ser normal. O índio não era mais humano, pelo menos não da forma como os outros. Ele parecia ele não sendo tão ele. Estava diferente, parecido com a aura mágica da india. Apenas de um jeito mágico o rapaz mudava. Reparando na energia clara a moça esticou sua mão, ainda temerosa, e tocando o puldo do rapaz que segurava um de seus punhais... Amana pode ver como um sonho a sua nascente.

Estava como sempre estivera, um pouco mais bela porém. Pode ver Ibira na beira da mata e depois sumindo por entre as árvores para depois se ver entrar na clareira com um homem. Seu rosto estava borrado pela distância e sóconseguia ver a sua energia. Tinha um poder enorme e quando os dois, que pareciam discutir, finalmente chegaram próximo o suficiente, Amana se sentiu dentro de um redemoinho e tudo parecia girar ate ser jogada para trás, caindo de costas e vendo a copa das árvores.

O céu havia mudado, estava mais cinzaequando ergueu a sua cabeça, viu prédios cinzentos e uns parcos pintados, viu pessoas seguirem seus próprios destinos e viu também que usava um vestido floral solto. Seu cabelo estava solto e não enxergava mais as pinturas em sua pele. Olhou para trás e viu bancos sob a grama recém aparada e debaixo de arvores com grandes folhagens onde pessoas riam sem aparentar qualquer problema ou dificuldade. Estava tudo muito confuso para a índia então apertou os olhos buscando ajuda na escuridão, mas viu apenas arvores e sua visão parecia se desfocar por alguns instantes.

— Entendeu, lele? —Ibira a olhava com um interesse parcial.

— Era o futuro? O que vai acontecer comigo?

— A gênia aqui é ocê. Ocê viu, agora sabe, pode entender. Ponto.

— Ibira, ocê precisa de meditar. Vem com eu?

A moça se levantou estendendo a mão para o irmão adotivo que a olhava com certa curiosidade e espanto. Nunca se dera bem com ela desde o dia em que a viu no rio onde foi resgatada. Nunca a quisera na familia, na tribo ou em qualquer lugar e a provocava de todas as maneiras que encontrava e ela agora lhe oferecia ajuda? Inacreditável.

— O que ocê quer em troca?

— Vai saber na hora certa, Seu Zé.

— Amana, o que ocê viu?— o rapaz recusou a mão da jovem e se pôs de pé sozinho.— Ninguém ajuda ninguém por nada.

— Família, Ibira. Tudo no seu tempo. Vamos?

— Fazer o quê?!

Os dois se colocaram a caminho da clareira onde Amana passou a dar lições em Ibira, parecia se divertir em vê-lo fracassar, mas o rapaz não desistia tão fácil e só parava quando tinha êxito. Claro, eles só se davam bem quando meditavam, nenhum dos dois falava nada e por isso mantinham uma convivência agradável. Era até mais fácil assim. Quem parecia gostar dessa "aproximação harmoniosa" era Lau. A índia era a única ligação entre os dois.

Universo Zero: Amana - Filha de Iara #1Onde histórias criam vida. Descubra agora