Prólogo

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Chovia muito e mesmo os uivos do vento não eram capazes de abafar os gritos da índia Airumã que agonizava entre as rezas do pajé. Nada parecia aliviar o desespero da jovem, que beirava a histeria. Airumã estava prestes a dar à luz em uma noite de tormenta, péssimo sinal para todos aqueles da aldeia, que suplicavam a Ceci clemência pela insensatez de Airumã.

Quem arriscaria dizer que mãe e filho vingariam ao parto prematuro, enquanto o canto do pajé ficava mais alto a cada grito de Airumã?

O vento soprava, a tormenta aumentava e os gritos cessaram para dar lugar ao choro de um recém-nascido. Uma menina. Araíba. Mas vingariam? O nascimento era mau agouro e todos sabiam que a desgraça estava feita.

Não tardou para que um homem de aparência desconhecida fizesse ameaças cada vez mais concretas.

Araíba. Ele a queria.

Airumã pediu exílio e se abrigou com a filha na mata, próximo a um riacho, mesmo diante do pajé que ameaçava jogar a criança fora para serem poupados das maldades daquele que se intitulava Magé. Sacrifício, era o que pediam. As alegações eram de que a menina era filha do mal, uma praga, a desgraça de todos. O pajé muito relutou em deixar mãe e filha partirem sob a promessa de nunca mais voltarem.

Mas no fim...

O tempo passou e a pequena Araíba cresceu, alegre e doce, porém fraca e doente. Não aparentava ser aquela caveira que descrevia o pajé e nunca fizera nenhuma maldade a qualquer animal. Não poderia ser a filha do mal, como o pajé insistia veementemente. Mas os tempos eram incertos.

Magé chegou e pôs fim às esperanças de uma vida de paz para todos.

Airumã pegou a menina e fugiu para a tribo em busca de segurança, pois na mata estavam vulneráveis demais para o feiticeiro. Apenas cinzas. Tudo o que havia restado de uma tribo forte e próspera foram cinzas.

Não havia mais volta. A perseguição não teria fim e Magé as seguiria até a morte, mas por quê?

Passos ecoaram pela floresta amazônica no norte do Tocantins. Airumã chorava como Ceci e implorava proteção aos apoiacinês, espíritos do bem entre os guaranis, assim como fazia a Caaporã.

A menina estava morrendo em seus braços, enquanto Magé a queria viva. Airumã já estava certa sobre suas mortes, quando o som dos passos aumentou gradativamente e a menina respirava com cada vez mais dificuldade. Então a índia correu com sua única filha nos braços até o leito do riacho e caminhou até que a água lhe chegasse à cintura, onde parou e deixou o corpo da pequena Araíba boiar.

Ela só tinha seis anos quando morreu nos braços da mãe.

Um último pedido deveria ser feito.

A índia Airumã, exilada e perseguida, com sua filha morta nos braços gritou um único nome. Um nome temido e simples, repleto de significados. Araíba flutuou e foi levada pelas águas de Mãe-Iara. Airumã apenas assistiu, entre lágrimas, a sua filha afundar e submergir sob pingos de uma garoa fina.

Era isso afinal, o que o pajé temia. O poder da menina. Ele temia o que ela se tornaria um dia e não era algo ruim e desprezível. Araíba estava morta porque esse era o seu destino. Morrer para renascer.

Aquela garoa fina muito se assemelhava às lágrimas de uma mãe quando pega no colo pela primeira vez uma filha querida, desejada. Era assim no final das contas. Uma pela outra. A menina reluzia sob as águas e ouviu um nome em seus ouvidos. Amana. Deveria ser seu nome. Uma índia guerreira como as icamiabas, certamente. A menina ainda seria caçada. Agora mais do que nunca. Magé faria de tudo para encontrá-la a menos que tivesse uma garantia de sua morte.

Nasceu Amana, a água que vem dos céus, a filha de Mãe-Iara, aquela capaz de mudar as coisas do jeito certo.

Airumã saiu das águas e caminhou em direção à mata para se entregar a Magé. Não poderia salvar sua filha, mas faria de tudo pela menina que agora habitava o corpo dela.

Sua pequena Araíba tinha cabelos curtos, enquanto a menina que deixara para trás, no rio, tinha longas cortinas negras como a noite.

Algo precisava ser feito.

Voltou às cinzas de sua tribo com uma criança nos braços. Uma menina morena e de cabelos curtos. A Araíba, que Magé tanto queria, estava, para todos os efeitos, morta. Era o que Magé iria acreditar e Airumã, garantiria que continuasse assim.

Amana se agarrava a uma pedra no leito do riacho, quando viu uma mulher magra, por quem sentiu uma tristeza terrível, sair das águas em direção à mata com passos firmes e decididos. Também sentiu uma dor profunda ao sentir olhos ferozes e famintos que a seguiam. Era um homem destemido e temido, ruim e cruel, ela sabia. Alguém furioso que olhava àquela que tanto amava com uma frieza sem tamanho.A garota voltaria para protegê-la e àqueles que precisavam ser protegidos, mas não agora. Ela saiu da água e correu na direção oposta a da mulher. Correu até seus pés sangrarem e ela cair. Até ser encontrada por uma índia que levava os filhos para o rio. Era necessário proteger a todos.

Proteger.

Ela não sabia o quanto poderia confiar neles, temia por saberem mais do que deveriam. Teria que manter uma vigília constante.

Uma sentinela, Aruana. Esse seria seu nome por enquanto.

Amana um dia fora Araíba, mas ainda não poderia ser filha de Mãe-Iara.

Por enquanto seria Aruana e se manteria assim até o inimigo chegar. Mesmo que isso levasse anos, seria paciente e também seria uma guerreira.

Universo Zero: Amana - Filha de Iara #1Onde histórias criam vida. Descubra agora