3- Ainda vivo

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Queria estar morto.

Fui amarrado a essa cama por homens muito mais fortes do que eu. Eles me forçam a continuar respirando, me alimentam com sondas...e estou resignado a me recuperar para poder voltar à mata. Vou me enforcar numa árvore e deixar a natureza devorar meu corpo, mas longe dessas pessoas. Eles estão tentando me salvar, apesar dos meus protestos e não merecem presenciar isso.

Perdi a conta de quantas vezes gritei para que me deixassem morrer mas eles só repetem que estou entre amigos. Eles são como eu. Ao menos alguns são...então eles entendem o que aconteceu comigo.

O que parecia um sonho ruim e desconexo no começo agora é a realidade que me atinge como um soco no estômago. Queriam respostas: Quem era eu? Como me chamava? De onde tinha vindo? De quem eram os restos mortais ao meu lado naquele buraco? Eu não falo há alguns dias. Tenho que ir embora antes da próxima lua cheia...eles não precisam me conhecer, pois não vou ficar.

Sei que o mais velho é o chefe da família. O Alpha se chama Lucius...eu o vi de relance numa das vezes em que veio ao meu quarto. Apesar de sua função, ele é gentil. Eu posso representar uma ameaça mas mesmo assim, ele tem sido compreensivo. Nunca conheci um Alpha assim. A dona da casa é Nana. Ela parece sábia demais para que eu olhe em seus olhos.Não suporto olhar para ela e as mulheres que a ajudam nos cuidados à minha saúde.

Nana disse para uma das meninas que a ajudam que minha alma está quebrada. Ela tem razão. Eu nem tenho mais uma alma. Sinto-me sujo, meus cabelos compridos não são lavados há muito tempo, mas sei que elas me limparam enquanto estive inconsciente. Estou envergonhado por estar aqui....especialmente porque não mereço a piedade dessas pessoas.

Acho que são uma vila como a minha. Mas na minha casa, um desconhecido nunca seria tão bem tratado...eu lamento tê-los conhecido assim. Se tivesse encontrado esse lugar com Yolanda, poderíamos ter recomeçado numa comunidade menos tóxica do que aquela em que nascemos. Agora isso já não importa mais.

Uma menina vem ao quarto todos os dias e fica olhando os livros numa estante. Depois senta-se no banquinho em frente da janela e fica lendo. Pela semelhança física, imagino que seja a neta de Nana. Portanto sou o invasor do quarto dela. Ainda estou amarrado aqui. Olho para a garota, que não deve ter mais do que quinze anos. Ela parece concentrada no livro, mas acho que está aqui para me vigiar.

Eu posso parar de incomodá-la. Só preciso sair desse lugar...talvez eu já esteja pronto...

-" As árvores são bonitas nessa época do ano. Tem flores, o perfume é bom. Por isso vovó me deu esse quarto" - dei um pulo na cama, assustado por ouvi-la pela primeira vez. Eu já tinha ouvido aquela voz antes....não tinha?

- " Eu perdi meus pais. Minha mãe morreu no meu parto. A culpa foi minha. Meu pai foi embora depois disso...Eu entendo bem sobre culpa. Não é fácil não ser um lobo, sabe?- ela olhou diretamente para mim- "E também parece difícil ser um."

Eu estremeci. Ela tinha olhos lindos, num tom entre o azul e o cinza. Nunca tinha visto aquele tom nos olhos de ninguém. Assim como a avó, tinha um jeito direto de olhar, que varria meus pensamentos. E falava sem parar, como se não estivesse esperando por uma resposta.

- " Você é um lobo, não? Muitos de nós são. Você estará seguro, mesmo na lua cheia. Meu irmão também não sabe manter-se consciente ainda. Nem Agnes...eles vão ser vigiados e você também. Não precisa tentar fugir, certo?

Como? Como ela sabia?

- "Vovó achou que você jamais voltaria...e esse mundo pode ser estranho e injusto, mas ainda há algumas coisas pelas quais lutar. Sei que você tentou lutar contra sua natureza...ouvi os homens deduzirem o que houve contigo. Eu sinto muito." - eu mordi o lábio inferior, sem perceber. Estava com os punhos cerrados, agarrado ao lençol.

Sua voz espalhava-se pelo quarto e eu não conseguia ouvir nem meus próprios pensamentos. Eu tinha dito alguma coisa em voz alta ou só pensado? Ela aproximou-se da cama, ajeitando atrás da orelha uns fios do cabelo muito negro, preso num rabo de cavalo baixo e eu senti medo pela primeira vez desde que chegara ali. Era alta e branca. Parecia tão terrível quanto encantadora quando a olhei, tenso e senti a boca secar.

- " Você gostaria de falar comigo?"

Eu sentia a garganta doer. Estava há muito sem pronunciar uma palavra, mas me vi incapaz de negar. Minha voz soou estranha, gutural.

"- Sou Oliver"- eu só percebi depois que estava segurando a respiração.

- " Sou Calíope. Cali, se formos amigos."- ela sorriu, parecendo adorável e muito jovem agora. Eu relaxei um pouco. Se me perguntassem, eu não saberia explicar a avalanche de sensações que senti ao ouvi-la.

- " Vou soltá-lo, Oliver. Primeiro você precisa de um copo de água. O soro ajuda, mas nada como água de verdade...- " ela desamarrou os nós com habilidade e eu massageei os pulsos enquanto ela me servia a água num copo que estivera ao lado da cama todo o tempo. Não vou negar que foi a melhor coisa que me aconteceu nos últimos dias. Eu estava sedento.

Não conseguia encará-la, mas precisava pedir para tomar um banho. Ela estendeu as mãos para mim, oferecendo apoio. Disse que me levaria ao banheiro. E traria shampoo e uma toalha para lavar e secar meu cabelo. Parecia tão feliz em me apoiar naqueles primeiros passos que eu me senti comovido. Quando nos viram atravessando o corredor em direção ao banheiro, outras mãos trataram de me amparar.

- " Segure-se em mim, vamos tirar sua sonda e cuidar de você, amigo!"- Um dos metamorfos que me ajudou, mais tarde descobri que era o irmão da garota. E eu finalmente pude tomar um banho decente pois apesar de tudo, ainda estava vivo.

Na companhia dos lobosOnde histórias criam vida. Descubra agora