Capítulo 3

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O sol entrava pela pequena janela do casebre. As palhas do teto dançavam uniformes com a passagem do vento primaveril.

Do lado de dentro, a mulher batia ferozmente a massa contra a velha mesa enegrecida pelo tempo, seu suor, escorria testa abaixo até se desprender de seu queixo e mergulhar no chão de terra batida.

Seus fortes braços estavam brancos de trigo moído, suas mãos habilidosas davam forma aos pães, enquanto a mais velha, das suas três filhas, atiçava as chamas do fogão à lenha.

— Crianças, o que está acontecendo ai fora? — O som da brincadeira das crianças menores silenciou, intrigando e levando a bela negra à porta.

— Mãe, o que foi? — a mulher não encontrava voz, para descrever o que via. Em seu momento de choque, esqueceu-se de quão imatura e inexperiente sua mais velha era, percebendo tarde demais que deveria poupá-la de tal visão.

 — Não! — gritou a jovem, ao ver suas irmãs enforcadas na árvore de seu quintal.

— Não! — gritou Raquel. Acordava do repetitivo pesadelo que vinha tendo havia semanas.

Dessa vez, era justificável. As últimas horas não foram nada fáceis. Do suposto mal entendido — que de mal entendido nada tinha —, com Gabriel e sua avó, à internação do Dylan, não se passaram mais que seis horas. Que para Raquel, parecera a eternidade.

Ela não conseguiu deixar de repassar toda a situação em sua mente.

Vó Maria, entrando na cozinha com o Dylan desmaiado no colo. O olhar em seu rosto, quando compreendeu o que se passava entre ela e Gabriel.

Toda a devoção de Gabriel, para socorrer o menino. O inverso de Diogo, que simplesmente não podia largar a tarefa na igreja, para levar o próprio filho ao hospital.

Dylan, seu pequenino, com um corte fundo na cabeça, desacordado em seus braços. Braços que não estavam presentes para evitar a queda.

Raquel, ainda sonolenta, olhava para as mãos e conseguiu ver o sangue de seu filho, apesar de já a terem limpado há algum tempo.

As lágrimas retornaram e ouviu nitidamente a represália que sua mãe lhe fez quando chegou ao hospital. — Deixe de bestagem — repreendeu dona Elenice —, engula esse choro. Você não é mais uma garotinha. Enfrente a situação. — aquela voz voltou a soar em seus ouvidos. Tratou de enxugar as teimosas lagrimas.

A falta de compreensão de sua mãe, não a machucava — não nesse momento —, lhe dava forças. A razão, para acabar sedada e fora do hospital, foi o pranto, o desespero, que fez morada em seu peito, a frustação, que tanto a falta de Diogo quanto a impotência diante da situação lhe causava e o motivo de todos os seus atuais problemas: a decepção.

Na mesa de cabeceira, o relógio marcava 19hs. Ela dormira por duas horas. A essa altura, seu filho já deveria estar de alta. Sentou-se e pegou seu Smartphone, deslizou a tela de proteção, havia mensagens.

“Estou com o Dylan, ele tá bem. Mas, vai passar a noite aqui. — Mensagem recebida ás 18h45min.”

— É óbvio que ele não tá bem. — retrucou Raquel. Fechou a janela do Diogo e abriu sua caixa de entrada do SMS.

“Filha, o Dylan levou oito pontos. As médicas o colocaram em observação. — Mensagem recebida ás 18h00min”.

Sua mãe não era fã das inovações tecnológicas, nem de formas de tratamento, nunca se despedia devidamente, fazia as coisas à moda antiga.

“Antiga demais” pensou Raquel.

Levantou-se e viu seu mundo girar, o calmante devia ser tarja preta, para prostrá-la daquela forma. Caminhou até a cozinha, encheu uma caneca de café. Esperou estar sóbria — ou sóbria o bastante — e ligou para seu pai. A pessoa que mais a entendia no mundo.

— Alô. Oi, pai, sou eu.

— Finalmente acordou.

— E estou tonta, preciso de carona para o hospital.

— Kelzinha, é melhor você ficar em casa e descansar.

— Pai, não dá. Meu Dylan vai pernoitar e não vou...

— Conseguir se perdoar? — interrompeu Sebastião — Filha me ouve, ok? O Nosso garoto está bem. Quando você tinha a idade dele, foi internada umas três vezes. Sempre foi danadinha. E todas às vezes era como a primeira. Sei o que está sentindo, mas é coisa de criança — disse compreensivamente. — Quando ele tiver os dele, vai poder contar sobre a primeira cicatriz — pausou brincando — Tira esse peso das costas. Ok? Ninguém pôde ficar com ele, na hora dos pontos. Agora, é um acompanhante por vez. Sua mãe já trocou com o Diogo. E se quiser saber minha opinião, você deveria deixá-lo pernoitar com o filho.  Renda-o amanhã, se for preciso.

— O senhor não vai mudar de ideia, não é?

Nope.

— Ok, pai. Amanhã o senhor me busca às seis. Pode ser?

— Combinado. Até amanhã Kelzinha.

— Te amo, pai.

— Ah, deixei uma cartela do comprimido, que lhe deram no hospital, na farmácia do seu banheiro. Vai ajudar a dormir sem pesadelos.

— Como sabe sobre os pesadelos?

— Diogo comentou. Boa noite, filha.

— Até amanhã, pai — Raquel desligou o telefone, meio atônita com o comentário de seu pai. Ao que parecia, Diogo, prestou atenção nela nas ultimas semanas.  Encaminhou-se para o banheiro, precisava de um banho quente.

O toque do interfone tirou Raquel do banho. Gabriel estava à sua porta.

“O que ele esta fazendo aqui? Será que é alguma notícia da vó?”

Claro, que em meio a toda confusão do Dylan, sua avó deixou a conversa sobre os dois para mais tarde. Maria nunca foi uma avó como as outras. Mãe de muitos filhos, nunca passou a mão na cabeça de quem errava. Bondosa, porém justa, não era de mimos. Jamais encobriu um errinho sequer dos seus filhos, netos ou bisnetos. Raquel nunca a ouvira dizer frases como: “É coisa da idade!” ou “Não sabe o que faz.” O que a deixava com um frio na barriga. Por que logo ela? Perguntava-se.

Correu em seu guarda-roupas, retirou o primeiro vestido que viu, passou os dedos nos cabelos molhados e foi abrir a porta.

Gabriel vestia jeans preto e uma camisa do Link Park. Trazia nas mãos uma caixa de Ferrero Rocher. Aos seus olhos, não existia nada mais belo que a mulher a sua frente. Os longos cabelos molhados cobriam o decote em v, olhos verdes escaneavam sua face, o vestido vermelho-sangue chegava à altura das coxas, convidava-o a tocá-la.

Ele foi até lá, com intuito de combinarem o que diriam a vó Maria. Naquele momento esqueceu-se de seu proposito.

— Entra, Gabriel. Vai ficar parado aí fora?

Gabriel entrou, colocou os bombons na mesa de centro e aguardou Raquel fechar a porta.

— O que houve? — ela indagou.

— Precisamos conversar, sobre a vó Maria.

— Sim, precisamos. Senta. Vou pegar um café, servido?

Gabriel olhava fixamente para a boca de Raquel. Nunca foi do tipo que se deixava levar por instinto, mas com ela a coisa mudava de figura. Puxou-a pelo braço encostando o corpo ao dela. Adorava o fato dos chinelos da Raquel serem de salto. Ela pareceu surpresa e resistiu, o que o deixou mais excitado.

— Calma! — falou baixinho fazendo-a parar de se mexer — Só um abraço. Sei que precisa dele.

Foi o bastante, para quebrar a resistência, acomodá-la em seus braços. 

RaquelOnde histórias criam vida. Descubra agora