O sol entrava pela pequena janela do casebre. As palhas do teto dançavam uniformes com a passagem do vento primaveril.
Do lado de dentro, a mulher batia ferozmente a massa contra a velha mesa enegrecida pelo tempo, seu suor, escorria testa abaixo até se desprender de seu queixo e mergulhar no chão de terra batida.
Seus fortes braços estavam brancos de trigo moído, suas mãos habilidosas davam forma aos pães, enquanto a mais velha, das suas três filhas, atiçava as chamas do fogão à lenha.
— Crianças, o que está acontecendo ai fora? — O som da brincadeira das crianças menores silenciou, intrigando e levando a bela negra à porta.
— Mãe, o que foi? — a mulher não encontrava voz, para descrever o que via. Em seu momento de choque, esqueceu-se de quão imatura e inexperiente sua mais velha era, percebendo tarde demais que deveria poupá-la de tal visão.
— Não! — gritou a jovem, ao ver suas irmãs enforcadas na árvore de seu quintal.
— Não! — gritou Raquel. Acordava do repetitivo pesadelo que vinha tendo havia semanas.
Dessa vez, era justificável. As últimas horas não foram nada fáceis. Do suposto mal entendido — que de mal entendido nada tinha —, com Gabriel e sua avó, à internação do Dylan, não se passaram mais que seis horas. Que para Raquel, parecera a eternidade.
Ela não conseguiu deixar de repassar toda a situação em sua mente.
Vó Maria, entrando na cozinha com o Dylan desmaiado no colo. O olhar em seu rosto, quando compreendeu o que se passava entre ela e Gabriel.
Toda a devoção de Gabriel, para socorrer o menino. O inverso de Diogo, que simplesmente não podia largar a tarefa na igreja, para levar o próprio filho ao hospital.
Dylan, seu pequenino, com um corte fundo na cabeça, desacordado em seus braços. Braços que não estavam presentes para evitar a queda.
Raquel, ainda sonolenta, olhava para as mãos e conseguiu ver o sangue de seu filho, apesar de já a terem limpado há algum tempo.
As lágrimas retornaram e ouviu nitidamente a represália que sua mãe lhe fez quando chegou ao hospital. — Deixe de bestagem — repreendeu dona Elenice —, engula esse choro. Você não é mais uma garotinha. Enfrente a situação. — aquela voz voltou a soar em seus ouvidos. Tratou de enxugar as teimosas lagrimas.
A falta de compreensão de sua mãe, não a machucava — não nesse momento —, lhe dava forças. A razão, para acabar sedada e fora do hospital, foi o pranto, o desespero, que fez morada em seu peito, a frustação, que tanto a falta de Diogo quanto a impotência diante da situação lhe causava e o motivo de todos os seus atuais problemas: a decepção.
Na mesa de cabeceira, o relógio marcava 19hs. Ela dormira por duas horas. A essa altura, seu filho já deveria estar de alta. Sentou-se e pegou seu Smartphone, deslizou a tela de proteção, havia mensagens.
“Estou com o Dylan, ele tá bem. Mas, vai passar a noite aqui. — Mensagem recebida ás 18h45min.”
— É óbvio que ele não tá bem. — retrucou Raquel. Fechou a janela do Diogo e abriu sua caixa de entrada do SMS.
“Filha, o Dylan levou oito pontos. As médicas o colocaram em observação. — Mensagem recebida ás 18h00min”.
Sua mãe não era fã das inovações tecnológicas, nem de formas de tratamento, nunca se despedia devidamente, fazia as coisas à moda antiga.
“Antiga demais” pensou Raquel.
Levantou-se e viu seu mundo girar, o calmante devia ser tarja preta, para prostrá-la daquela forma. Caminhou até a cozinha, encheu uma caneca de café. Esperou estar sóbria — ou sóbria o bastante — e ligou para seu pai. A pessoa que mais a entendia no mundo.
— Alô. Oi, pai, sou eu.
— Finalmente acordou.
— E estou tonta, preciso de carona para o hospital.
— Kelzinha, é melhor você ficar em casa e descansar.
— Pai, não dá. Meu Dylan vai pernoitar e não vou...
— Conseguir se perdoar? — interrompeu Sebastião — Filha me ouve, ok? O Nosso garoto está bem. Quando você tinha a idade dele, foi internada umas três vezes. Sempre foi danadinha. E todas às vezes era como a primeira. Sei o que está sentindo, mas é coisa de criança — disse compreensivamente. — Quando ele tiver os dele, vai poder contar sobre a primeira cicatriz — pausou brincando — Tira esse peso das costas. Ok? Ninguém pôde ficar com ele, na hora dos pontos. Agora, é um acompanhante por vez. Sua mãe já trocou com o Diogo. E se quiser saber minha opinião, você deveria deixá-lo pernoitar com o filho. Renda-o amanhã, se for preciso.
— O senhor não vai mudar de ideia, não é?
— Nope.
— Ok, pai. Amanhã o senhor me busca às seis. Pode ser?
— Combinado. Até amanhã Kelzinha.
— Te amo, pai.
— Ah, deixei uma cartela do comprimido, que lhe deram no hospital, na farmácia do seu banheiro. Vai ajudar a dormir sem pesadelos.
— Como sabe sobre os pesadelos?
— Diogo comentou. Boa noite, filha.
— Até amanhã, pai — Raquel desligou o telefone, meio atônita com o comentário de seu pai. Ao que parecia, Diogo, prestou atenção nela nas ultimas semanas. Encaminhou-se para o banheiro, precisava de um banho quente.
O toque do interfone tirou Raquel do banho. Gabriel estava à sua porta.
“O que ele esta fazendo aqui? Será que é alguma notícia da vó?”
Claro, que em meio a toda confusão do Dylan, sua avó deixou a conversa sobre os dois para mais tarde. Maria nunca foi uma avó como as outras. Mãe de muitos filhos, nunca passou a mão na cabeça de quem errava. Bondosa, porém justa, não era de mimos. Jamais encobriu um errinho sequer dos seus filhos, netos ou bisnetos. Raquel nunca a ouvira dizer frases como: “É coisa da idade!” ou “Não sabe o que faz.” O que a deixava com um frio na barriga. Por que logo ela? Perguntava-se.
Correu em seu guarda-roupas, retirou o primeiro vestido que viu, passou os dedos nos cabelos molhados e foi abrir a porta.
Gabriel vestia jeans preto e uma camisa do Link Park. Trazia nas mãos uma caixa de Ferrero Rocher. Aos seus olhos, não existia nada mais belo que a mulher a sua frente. Os longos cabelos molhados cobriam o decote em v, olhos verdes escaneavam sua face, o vestido vermelho-sangue chegava à altura das coxas, convidava-o a tocá-la.
Ele foi até lá, com intuito de combinarem o que diriam a vó Maria. Naquele momento esqueceu-se de seu proposito.
— Entra, Gabriel. Vai ficar parado aí fora?
Gabriel entrou, colocou os bombons na mesa de centro e aguardou Raquel fechar a porta.
— O que houve? — ela indagou.
— Precisamos conversar, sobre a vó Maria.
— Sim, precisamos. Senta. Vou pegar um café, servido?
Gabriel olhava fixamente para a boca de Raquel. Nunca foi do tipo que se deixava levar por instinto, mas com ela a coisa mudava de figura. Puxou-a pelo braço encostando o corpo ao dela. Adorava o fato dos chinelos da Raquel serem de salto. Ela pareceu surpresa e resistiu, o que o deixou mais excitado.
— Calma! — falou baixinho fazendo-a parar de se mexer — Só um abraço. Sei que precisa dele.
Foi o bastante, para quebrar a resistência, acomodá-la em seus braços.
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Raquel
Romansa— Eu sonhei. Um dia, eu sonhei... que teria alguém deitado ao meu lado na cama, me abraçando, afagando meus cabelos, me protegendo. Um dia, eu sonhei... com um companheiro, guerreiro, fiel, parceiro. Alguém que afastaria os medos. Mas ai, eu acordei...