Uma inusitada preferência pelo absurdo

818 72 7
                                    

O sol já estava alto quando ela parou de trabalhar, depois que o súbito surto de energia criativa que se apoderara de sua mente finalmente se desvaneceu. Concluiu que aquele fora o primeiro trabalho mais consistente que ela conseguira realizar na última semana, e decidiu comemorar isso caindo sobre a cama com a mesma roupa com que estava vestida.

Não demorou muito para começar a sonhar. Um belo rosto com expressivos olhos castanhos se apoderou da maioria das imagens que surgiram em meio a seu estado onírico. E juntamente com ele, uma voz insistente que parecia não parar mais de falar.

- Por que tudo tem de ser tão sério?, ela perguntou, rindo ao deslizar a mão sobre o peito dela.

- Porque a vida é um negócio sério. - Mas esse é apenas um dos lados da moeda. E há muitas e muitas moedas em nossa vida. Não vai dançar comigo?

Ela já estava dançando. Estavam no Delta, e embora o clube estivesse vazio, havia música no ar. Uma música suave e sensual.

- Não vou ficar de olho em você. Não conseguirei fazer isso.

- Mas você já está.

Manoela apoiava o queixo no alto da cabeça dela. Quando ela inclinou a cabeça para trás e mordiscou-lhe o queixo com sensualidade, ela sentiu um arrepio pelo corpo.

- Ficar de olho em mim não é tudo que você quer fazer comigo, não é?

- Eu não quero você. Ouviu-se uma risada leve como o ar.

- Acha que adianta negar isso até mesmo em seus sonhos? Pode fazer o que quiser comigo em seus sonhos. Não fará diferença.

- Eu não quero você, ela repetiu, já deitando-se com ela sobre o chão.

Manoela acordou ofegante e suando, enrolada entre os lençóis. Depois de alguns segundos, quando sua mente finalmente começou a clarear, não conteve o riso. Giovanna era mesmo uma ameaça, concluiu. De fato, a única coisa que parecera mais sensata em seu sonho erótico fora o detalhe de ela repetir que não a queria. Depois de passar as mãos pelo rosto, olhou para o relógio ainda em seu pulso. Já passava das quatro horas da tarde, e foi somente então que ela se deu conta de que aquela fora a primeira vez que ele conseguiria dormir por oito horas na última semana. Que culpa tinha ela, se seu relógio biológico andava meio maluco?

Ao chegar à cozinha, notou que teria de descer e comprar algo para comer. Tomou um banho e lavou os cabelos, coisa que estava há 4 dias sem fazer. Pensou em comer algo fora, para ter uma refeição decente. Quem sabe assim teria mais ânimo de enfrentar o horror de ter de fazer compras e ver todas aquelas pessoas armazenando carrinhos e mais carrinhos de comida no mercado.

Já vestida e sentindo-se mais bem-disposta, abriu a porta. Giovanna abaixou a mão que havia acabado de levantar para tocar a campainha.

- Graças a Deus que você está em casa.

Manoela não conseguiu deixar de se lembrar do sonho que tivera havia poucas horas.

- O que foi?

- Você precisa me fazer um favor.

- Não, não preciso não.

- Mas é uma emergência! - Ela a segurou pelos braços antes que ela pudesse se afastar. - E uma questão de vida ou morte! A minha vida e muito provavelmente a morte de Johnny, sobrinho da sra. Wolinsky. Sim, porque um de nós vai morrer se eu tiver de sair com ele! Foi por isso que eu disse a ela que já tinha um encontro esta noite.

- E você acha que eu tenho algo a ver com isso porque...

- Oh, não seja ranzinza justo agora, Aliperti. Não está vendo que sou uma mulher desesperada?! Ouça, ela não me deu tempo de pensar, e eu sou péssima com mentiras. Quero dizer, não minto com muita freqüência, por isso não consigo mentir direito. Ela ficou insistindo em perguntar com quem eu ia sair, e eu não consegui pensar em ninguém mais a não ser você.

Giovanna continuou de pé bem diante dela, impedindo-a de sair. Manoela respirou fundo, tentando se manter paciente.

- Vamos deixar uma coisa bem clara, está bem? - disse a ela. - Isso não é problema meu.

- Não, eu sei que é meu. E com certeza teria inventado uma coisa melhor se ela não houvesse me pegado de surpresa, enquanto eu estava trabalhando e pensando em outra coisa. - Desesperada, Giovanna passou a mão pelos cabelos. - Ela vai ficar me vigiando, entende? Vai querer se certificar de que eu vou mesmo sair com alguém.

Dizendo isso, começou a andar de um lado para outro massageando as têmporas, como que para estimular os pensamentos. Manoela aproveitou o momento de distração de Giovanna e começou a seguir em frente pelo corredor.

- Ouça, tudo que terá de fazer será me acompanhar para fora do prédio fingindo ser alguém que está interessado em mim - falou ela, atrás de Manoela. - Poderemos tomar um café, ou algo do gênero, e passar algumas horas fora antes de voltarmos. Sim, porque ela também vai saber se não voltarmos juntas. Aquela mulher sabe de tudo! Prometo que lhe pagarei cem dólares por isso. Ouvir aquilo a fez parar de repente.

- Quer me pagar para que eu saia com você?

- Não é bem assim, mas é quase - admitiu Giovanna.

- Sei que o dinheiro lhe será útil, e acho justo compensá-la pelo tempo que você vai gastar. Cem dólares, Aliperti, por algumas horas. Ah, e eu pagarei o café.

Manoela se encostou na parede e ficou observando-a. A idéia parecia tão absurda que chegava a ser cômica.

- Nem um pedaço de torta? - perguntou a ela. A risada de Giovanna foi de puro alívio.

- Torta? Você quer torta? Pois terá sua torta.

- Onde está ele? - indagou Manoela, olhando para o bolso dela.

- Ele? Ah... o dinheiro? Espere um pouco aqui.

Giovanna entrou no apartamento e Manoela pôde ouvi-la andando de um lado para outro, abrindo e fechando gavetas e armários.

- Deixe-me apenas me arrumar um pouco - disse ela, lá de dentro.

- O cronômetro está correndo, garota.

- Tudo bem, tudo bem. Onde diabos está minha... A-ha! Dois minutos, só dois minutos. Não quero que ela fique dizendo por aí que saio com as pessoas sem nem mesmo passar batom.

Manoela teve de admitir: quando ela dizia dois minutos realmente eram dois minutos. Quando voltou, dois minutos depois, estava usando um par de sandálias de salto alto, batom cor-de-rosa e um par de brincos de argola. Segundo Manoela pôde notar, quando ela lhe entregou o dinheiro, os brincos continuavam não combinando. Devia ser uma questão de preferência mesmo, concluiu ela. Uma inusitada preferência pelo absurdo.

A vizinha - Griperti Onde histórias criam vida. Descubra agora