5 - As cartas

28 3 1
                                    

O suor escorria pela lateral dos cabelos de Rosana, descendo por sua bochecha. A blusinha já estava encharcada e ela sentia as mãos molhadas no volante quente. Era oito horas e o Sol já ardia no céu sem nuvens. O carro parecia uma sauna e, apesar de ela estar dirigindo relativamente devagar, o indicador de temperatura não parava de subir.

Logo após passar a placa indicando a aproximação da cidade de Rio Bonito, viu o posto de gasolina. Era uma dessas paradas grandes, cheia de caminhões e ônibus. Resolveu encostar para dar uma olhada no motor. Não que entendesse alguma coisa, mas talvez alguém lhe oferecesse ajuda. Suspirou, desalentada. Tinha dependido muito da ajuda de estranhos, nos últimos meses.

Estacionou o carro próximo à área dos caminhões, mas achou melhor não ir até lá. Abriu o capô do Uno e foi até à sua frente, fingindo que sabia o que estava fazendo. Viu fumaça saindo do motor e até ela sabia que isso não era um bom sinal. Com o carro funcionando corretamente, estava a cerca de quarenta minutos de Dois Pinheiros, menos do que qualquer passeio de carro dentro do trânsito da cidade de São Paulo. Pensou em Lucas, assustado e desorientado, esperando por ela no abrigo e lágrimas marejaram seus olhos.

- Precisa de ajuda, mocinha?

Rosana esfregou os olhos e piscou como se estivesse incomodada com a fumaça, tentando disfarçar as lágrimas, antes de olhar para o dono da voz. Era um homem alto, gordo e barbudo. Usava um boné com o símbolo do posto de gasolina e uma camiseta com a estampa de um homem nu, com asas, e a inscrição Led Zeppelin logo abaixo.

- Está saindo fumaça. – foi tudo o que conseguiu dizer.

- Posso dar uma olhada? – perguntou o homem grande e barbudo, se aproximando sem esperar a resposta e começando a mexer nos cabos.

Enquanto o homem procurava o defeito do carro, Rosana aproveitou para reparar melhor nele, devia ter aproximadamente dois metros de altura, a barba era cheia e parecia não ser aparada há muito tempo. As mãos eram grandes e ágeis. Pensou que não gostaria de ver esse homem irritado. No entanto, apesar do tamanho, seus olhos concentrados no motor passavam uma impressão de bondade e serenidade.

- O carro está sem água nenhuma. – falou ele – Você colocou antes de pegar a estrada?

- Sim. – respondeu Rosana – Enchi o reservatório ontem, antes de ir dormir.

- Deve estar vazando em algum lugar. Vou até ali pegar água e minhas ferramentas. Talvez dê para resolver isso.

O homem foi em direção a um grande caminhão de carroceria vermelha, pegou um galão que estava abaixo do compartimento de carga, uma caixa de metal e voltou rapidamente.

- Por que você não vai tomar um café da manhã, enquanto termino aqui. – disse ele – Pode deixar a chave. Prometo que não vou sumir com o seu carro. – completou, esboçando um sorriso.

Rosana sorriu de volta e falou que era uma boa ideia. Foi até o carro e pegou a bolsa e o celular. Verificou que não havia nenhuma mensagem ou ligação. Não sentia um pingo de fome, mas provavelmente o caminhoneiro não queria que ela ficasse olhando enquanto ele trabalhava.

A lanchonete do posto era grande e cheia de mesas, provavelmente usada por caminhoneiros e outros viajantes que paravam ali para almoçar e jantar. Ela sentou e pediu café e um pão com manteiga na chapa.

Enquanto comia, devagar e sem vontade, começou a pensar em Jéssica, sua melhor amiga da faculdade. Elas costumavam contar suas poucas moedas para comer pão na chapa com café na padaria, em frente ao prédio onde moravam, antes de irem para as aulas. Pensar na amiga imediatamente fazia voltar a lembrança de Madame Corinna, a cartomante para onde Jéssica a arrastou em um dia particularmente frio de São João.

Jéssica dirigia um fusquinha azul bebê (ela chamava de "azul calcinha"), velho e enferrujado. O vento gelado do inverno entrava pelas frestas mal vedadas das janelas do carro. Naquele vinte e quatro de junho, a amiga dizia que os espíritos da floresta iriam revelar o futuro para elas, através das cartas de Madame Corinna. Estava visivelmente empolgada. Rosana achava tudo uma grande bobagem, mas como era impossível discutir qualquer coisa com Jéssica, ela se deixou levar até um sobrado no bairro da Lapa, onde a cartomante atendia.

Madame Corinna se vestia como uma cigana e falava com um sotaque fajuto e carregado, que variava do alemão para o russo, passando talvez por um pouco de francês. As cartas revelaram para a amiga que ela conheceria um homem alto e bonito, se casaria, teria dois filhos e se tornaria uma professora universitária, o que não era muito diferente da vida que Jéssica imaginava para si própria. O acidente que tirou sua vida, cerca de um ano depois, acabou por fazer com que nenhuma das previsões se realizasse, mas Jéssica ficou feliz de ouvir tudo aquilo.

Quando chegou a sua vez, Rosana se divertia com toda a encenação de Madame Corinna: "Você se casará em breve. Conseguirá um bom emprego. Conhecerá um rapaz muito inteligente". Simples variação das previsões feitas para a amiga. De repente, o olhar da cartomante ficou sério. Ela olhou fixamente para as cartas, para Rosana, de novo para as cartas e disse: "Você fará três filhos, mas nenhum será seu". E, olhando novamente diretamente nos seus olhos, completou: "Me desculpe".

Rosana voltou para o fusca azul dando risada, enquanto Jéssica tremia de frio. A amiga parecia estar assustada com a última previsão, mas Rosana lhe disse para relaxar, que tudo aquilo fazia parte do teatro. A vontade de Madame Corinna era que elas ficassem impressionadas e se tornassem clientes assíduas, daquelas que estão sempre preocupadas com o futuro.

Rosana esqueceu completamente das previsões, até sofrer seu primeiro aborto espontâneo. A segunda gravidez, no ano seguinte, foi ainda mais difícil e, apesar de ter ficado na cama quase todo o tempo, acabou perdendo também o segundo filho, no quarto mês. Quando Lucas nasceu, depois de outra gravidez complicada, ela finalmente podia dizer que havia vencido as cartas da maldita Madame Corinna. Agora, com o filho desaparecido há sete meses, não sabia mais o que pensar. Tentava dizer para si mesma que era tudo uma grande bobagem, mas...

- Mocinha, tudo certo! - disse o caminhoneiro, parado ao lado de sua mesa, limpando as mãos em um pano - Quero dizer, o carro vai aguentar por algum tempo, mas você deve levá-lo a um mecânico o mais breve possível. Estava vazando água e eu vedei com minha "massinha secreta", porém não vai durar muito. Vá devagar para não fundir o motor. - completou ele.

Rosana pegou as chaves que ele devolvia, agradeceu e falou para o caminhoneiro sentar e tomar um café. Ele respondeu que aceitava um para viagem, precisava cair na estrada o mais rápido possível. A mulher pediu a bebida para o atendente e o gigante fã de Led Zeppelin pegou direto no balcão, acenando em sua direção e saindo em seguida. Só nesse momento, Rosana percebeu que não tinha sequer perguntado o nome de seu salvador. Do lado de fora, Miltão manobrava o caminhão vermelho e saía rumo à estrada.

Nunca mais eles se viram.

A Busca  (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora