Carta ao filho

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Penso em como seria bom se conseguisse amarrar os pés com cordas que se segurassem a qualquer coisa para que o meu pai nao me pudesse arrastar.
"Carta ao pai - kafka"

Voce herdou o demonio do seu pai.
Alem disso, uma das piores coisas que eu poderia ter lhe deixado seria lembrar do seu velho só de fralda sem saber aonde esta ou sequer reconhecer o rosto da mulher com quem eu convivi vinte e dois anos; convivência essa que torço para que consiga com a Paulinha. Tao boa ela. Voce nao pode perde - lá, Ricardo, ela é a melhor.  Me lembra muito sua mae quando jovens. Espero que voces nao se tornem um casal como fomos.
Dá ultima vez que voce esteve aqui, eu menti. Eu sabia que voce era meu filho e sabia que aquela era a Paulinha. É que eu precisava ver em seu rosto oque sua boca nao me dizia. Desculpa. Mas, só assim voce nao me esconderia nada. Nao quero que me guarde assim, quero que me lembrem fazendo churrasco, jogando playstation com o paulinho... voce é o unico que vai me entender e ver que o diabo tambem faz coisas admiráveis. Eu poderia me empurrar mais alguns anos, ate que o tempo apague tudo: apague quem eu sou, quem é voce, sua mae, sua irma. Apague, em mim, quem somos. Antes a memoria fresca junto ao morto do que um morto sem memoria. Nunca mostre essa carta pra sua irma. Ela é parecida demais com a mae. E, agora,  voce é o homem da casa.
Seu pai é mesmo um egoista, sabia? - Depois de ler a carta em voz alta, Paulinha abraca Erica, a viúva. Ricardo nao prestou muita atencao depois do demônio: herdei o demonio...
E essa é a unica coisa que ele deixou? Só isso? - Pergunta Erica.
Tem outras coisas que ele escrevia. Quase um diário... Esse dai é de hoje. Dona Erica - responde Ruti.
Vou la ver.
Não, - Ricardo impede Erica de continuar - é melhor você nao ver nada mãe. Ta branco demais o pai. Ele... ele ja tinha ate se vestido de terno. Voce nao precisa fazer nada. Deixei o corpo deitado na cama. Vem. Senta aqui.
E que compras foram essas que voce fez que demoraram tanto, Ruti? - Erica empurra Ricardo e, falando com as mãos, continua seus questionamentos - E desde quando eu permiti que trocasse o tapete? Ou algum movel do lugar? Que andou fazendo? Seu trabalho era cuidar dele! Voce... como ele se enforcou? Quase nao ficava em pé... como?... ele...
Olha - interrompe Ricardo - o velho acaba de morrer, o que ela poderia ter feito?
Nunca vou entender voces! Ele ja tinha superado tanta coisa pior... ele sempre foi assim! Desistia de mim! Desistiu de voce! Desistiu...
Desistir é diferente de nao querer tentar, mãe.
Ele ainda tinha muito tempo!
O pai nao era assim! Ele nao queria viver na merda.
Que merda o quê, Ricardo.
A merda da doença nao tem cura, mae.
E eu? E sua irmã? A menina nem terminou a faculdade, Ricardo. Voce ja ta formado, ja trabalha... E ela? Perder pai tao nova! E o Pedrinho?... Gostava tanto do avô...
Calma, mãe. Nao chora. O papai nao...
Nao chora é o caralho!
Erica se separa do grupo e anda em direção a janela mais afastadada sala. Na direção oposta, no quarto aos fundos do corredor, ainda presa as vigas de madeira do teto, a corda morre de um lado para outro. Cercado de fotografias e jornais pregados na parede, o corpo do pai esta renunciado na cama: o cabelo macilento; a engalhada pele do rosto; e, adormecida sobre as olheras papudas, a fechadura trancada dos olhos modorra ate a barba rapada que desenha a saliência do resoluto queixo do defunto. O pescoco aberto revela as marcas impressas na pele. A camisa branca fenece sobre o terno escuro. A calca desencarna junto os tornozelos nus; o pai odiava usar sapato. Na prateleira,  os trofeus conservam teias de aranha. Os aparelhos de respiracao artificiais desligados. Um silêncio religioso impregna o ar. Na sala, Ricardo pega a carta e, mexendo os labios começa a ler novamente baixinho. Ruti aguarda em pé alguma ordem.
Temos que comecar a ver o enterro - diz Paulinha.
Eu sei.
Nao sei é como vamos pagar...
Tenhos minhas economias.
Que economias? Voce vive duro.
Tenho um dinheiro guardado, Paula. Nao me estressa com isso, puta que pariu.
Queria que voce fosse menos parecido com ele, juro.
Se contasse como o pai havia transferido uma quantia de doze mil reais para sua conta no banco na semana passada, todos o julgariam o pior filho. Era um sinal, eles diriam. De onde saiu o dinheiro, eles iriam querer saber. Porque nao tentou impedir, eles insistiriam. Um ciclo de culpa rondaria a sala ate decidissem que o pai era doente, que ele, o filho, era um bastardo, ate que Paulinha dissesse novamente que nao aguentava mais esse jeito torto de ver a vida. Decidiu, portanto, mudar de assunto:
Fica tranquila, Ruti. O pior ja passou - diz Ricardo virando seu olhar para a empregada - como vai a netinha, ruti? Ja saiu do hospital?... E o tratamento deu certo?
Ruti nao responde.
De pé, Paulinha, com a bolsa carteira em mãos, segue para o banheiro fechando os olhos enquanto caminha pelo corredor: nao queria nem arriscar ver o defunto.
Vou buscar sua irma, Ricardo, pelo menos com ela eu posso conversar - antes de sair Erica aguarda alguma objeção de Ricardo,  que parado estava, parado continuo. Agora, sou o homem da casa. Na sala, ele acariciava essa frase como uma poesia.
Obrigada, Ruti.
Nos vamos para o inferno, seu Ricardo.
Eu vou. Voce nao fez nada.
Por isso mesmo, fiz nada! Nada!
Fala baixo, porra! Paula ta aqui do lado.
Desculpa, seu Ricardo...
Me chama só de Ricardo... E, olha, ninguem aqui tava nem ai pro velho, ninguem. Ele só descansou, só isso. Nao era isso que ele queria... Nao era?
Era, mas, e se mudasse de ideia?
Cabeca dura do jeito que ele é?
A gente ja conversou, Ruti. Nao quer o dinheiro pra ajudar a comprar os trecos de sua netinha? E, afinal, de quem foi a ideia da carta?

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